15/02/2020

ANDRÉ BARATA

.






Despenalizar não é querer, 
é respeitar

Despenalizar a eutanásia, e o suicídio assistido, não significa ser a favor da eutanásia. Mesmo nas circunstâncias restritas que vão ser discutidas e eventualmente aprovadas dia 20, o Estado não será a favor da eutanásia. Dizer o contrário é tão falso como, permita-se o paralelo, dizer que o Estado é a favor da interrupção voluntária da gravidez porque a despenalizou.

Dia 20 de Fevereiro, quase dois anos após a última discussão parlamentar sobre o tema, de novo várias propostas sobre a despenalização da eutanásia sobem a plenário da Assembleia da República.

São cinco propostas restritivas, que despenalizam a antecipação da morte quando pedida por pessoa humana adulta em condição de sofrimento terminal e irreversível e em plena posse das suas capacidades de deliberação. Todas, sem excepção, têm isto em comum. Além disso, são propostas prudentes, que estabelecem um protocolo minucioso de acompanhamento, desde o pedido consciente, sempre reversível, à exigência de que seja um processo consciente até ao fim.

Mais passos e mais reiterações apenas trarão mais tortura e mais sofrimento a pessoas em sofrimento incurável, pessoas que a sociedade reconhece não terem outra esperança se não a de que o tormento termine.  Respeitar a vida, as vidas vividas, com rosto, corpo e alma, cada uma singularidade absoluta tem de incluir o respeito por esta última vontade. As últimas vontades são, por princípio, irreversíveis e o irreversível é algo que, por princípio, deve estar fora dos poderes de um Estado.

Desde logo, o poder do Estado violentar a consciência de cada cidadão com a tirania de um referendo em que uns decidirão sobre a consciência de todos os outros. Importa sublinhar esta assimetria: são aqueles que não querem a despenalização a quererem impor demasiado a todos. Para quem quer a despenalização, não se tratar de impor, mas de respeitar. Nem sequer se trata de defender a liberdade de cada pessoa, mas de respeitar a sua vida concreta, de carne e osso, mas, além disso, de família e amigos, de carácter e valores de que ninguém deveria ter de prescindir apenas porque está à mercê de um poder do Estado dizer não.

Muitas matérias podem e bem ir a referendo, mas esta é um ultraje à própria matéria referendada. E nada o justifica. Nem nos fins nem nos meios. Por princípio, não se referenda a vida. Bem o reconhecem os partidos com assento parlamentar e até a Conferência Episcopal. Ainda assim, os bispos preferem ir contra os princípios. Não se compreende. E no congresso do PSD da semana passada, Paulo Rangel clamou que está a decidir-se nas “costas dos portugueses”. Mas como se pode dizer isto?

É indesmentível que as propostas que se discutirão no dia 20 são o culminar amadurecido de um debate público que já leva anos, tendo percorrido todos os foros de discussão, televisões, rádio, universidades. Debates promovidos pelo parlamento, pelos partidos, pelos media, pela Comissão Nacional para as Ciências da Vida. Não se pode dizer que a sociedade não esteja familiarizada com o debate e não se pode dizer que estas propostas não incorporem o debate da sociedade portuguesa.
Fique claro. Despenalizar a eutanásia, e o suicídio assistido, não significa ser a favor da eutanásia.

Mesmo nas circunstâncias restritas que vão ser discutidas e eventualmente aprovadas dia 20, o Estado não será a favor da eutanásia. Dizer o contrário é tão falso como, permita-se o paralelo, dizer que o Estado é a favor da interrupção voluntária da gravidez porque a despenalizou.

Nada podia ser mais grave do que pôr um debate tão fundamentalmente ligado à vida concreta das pessoas em termos morais e políticos grosseiramente errados. Infelizmente, opositores à despenalização têm-no feito. Primeiro, opondo vida e morte. Mais recentemente, pondo em alternativa eutanásia e cuidados paliativos. São duas ideias erradas e que merecem reflexão moral e política cuidada.

É categoricamente falso que uns estejam pela vida e outros pela morte. No máximo, uns estão por uma maneira de encarar a vida e outros por outra. E, no entanto, entre as duas a diferença é significativa.

O que deve prevalecer: o respeito pela vontade de quem concretamente vive uma vida ou o respeito pela vida independentemente de quem a vive e a sofre? Que dignidade se respeita, a da vida concreta, humana, com biografia, sonhos, memórias, alegrias e tristezas, ou uma abstracção a que se chama biologicamente vida? Que vida é essa que julgam sacralizar quando, na verdade, a separam da vida concreta humana de cada pessoa? Que vida é essa anónima que separam e opõem à vida com nome próprio, única que pode ser tratada por tu? Que vida transcendente à vida de cada um é essa?

Eu respondo empregando o “tu” que interpela, como nos textos religiosos: é a vida que te é dada e que te é tirada sem que uma palavra tenhas a dizer sobre o assunto. É a vida que tens de aceitar, na vinda e na ida, como uma transcendência. É a vida pensada abstractamente como uma categoria da transcendência. Mas isso não é pensar a vida civilmente, mas religiosamente. Para um estado laico, plural e tolerante, todas as concepções de vida são boas desde que entre si se tolerem. Se para uma a vida é tão transcendentemente tirada como foi dada, então a eutanásia está para a morte tão fundamentalmente errada como qualquer controlo está para a natalidade.

Não é difícil de perceber. Se quem subscreve esta perspectiva da vida quer vivê-la assim, se a Igreja Católica o quer, nada a impede de o fazer na sociedade portuguesa e no Estado português. E deve merecer todo o respeito. Mas é chocante querer que o Estado português não permita à sociedade outra concepção de vida. É intransigência. E comporta um elemento de intolerância e instrumentalização inaceitáveis. A vida é um valor absoluto, mas nenhuma religião, por isso, pode impor que a vida seja uma transcendência.

E também é categoricamente falso que a despenalização da eutanásia seja, na intenção ou na prática, uma alternativa aos cuidados paliativos. De forma absolutamente inequívoca, o Estado está tão obrigado a desenvolver, junto, dentro ou ao lado do seu SNS, uma rede de cuidados paliativos, como está obrigado a não propor, encorajar, ou de qualquer outra forma activa, induzir cidadãos a escolher a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido como forma de morrer.

O Estado não se dispensa da sua função social, desenvolve uma rede cuidados paliativos, assume as suas responsabilidades e deixa a eutanásia à consciência responsável das próprias pessoas, não fugindo à responsabilidade de as apoiar, quando essa é a sua vontade e quando essa é uma vontade socialmente compreendida. O Estado não propõe a eutanásia, despenaliza-a.

Pode argumentar-se que nada se tem contra o suicídio e que só não se aceita que o Estado, o seu Serviço Nacional de Saúde e os seus profissionais se disponham a ser instrumentos de uma morte que se dá. Simplesmente, e como teria de ser sob um preceito de respeito, todas as propostas de despenalização garantem o direito de objecção de consciência aos profissionais de saúde.

Mas, salvaguardadas as convicções dos médicos e enfermeiros, queremos realmente um Estado Pôncio Pilatos que age como se dissesse “daqui lavo as minhas mãos”? Deve o Estado virar as costas a quem se lhe dirige, motivado nas razões de sofrimento socialmente mais respeitáveis, e lhe pede ajuda? Cuidar não pode ser apenas a instância das nossas convicções.

Argumenta-se e bem que autonomia, respeito, responsabilidade são palavras desprovidas de significado sem uma referência aos outros. Mas este pensamento terá pouco valor moral se não nos dispusermos a aceitar o outro como integralmente um outro, tão igualmente outro como eu sou eu. Verdadeiramente, essa é a razão moral profunda por que nenhuma vida mais vale do que outra.

Por isso, todas as propostas que vão ser levadas ao nosso parlamento partilham o mesmo sentir civil profundo: de que é injusta a lei que condena pessoas a um sofrimento terminal e irreversível que elas não querem, de que é injusta a lei que reduz a vida concreta à abstracção da vida biológica, de que é errada a política de saúde que julga curar sofrimento complexo tornando-o indolor.

Quem pede pelo socorro da morte medicamente assistida não está a pedir que lhe anestesiem a vida, ou a morte. Está a pedir que o ajudem a viver a sua vida até ao fim. Precisamente porque todas as vidas são igualmente dignas. E também porque nenhum cuidado, por extremoso que seja, tem o direito de se substituir ao respeito por aquele de quem se cuida. Posso concordar com Tolentino Mendonça quando afirma “diga-se o que se disser, a vida é a coisa mais bela.” Sim, é verdade, mas essa coisa mais bela a que chamamos vida tem viver e tem morrer. E só a dignidade de ambas é bela.

* Filósofo, professor na Universidade da Beira Interior

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
14/02/20

.

Sem comentários:

Enviar um comentário