11/01/2020

ISABEL MOREIRA

.





O bispo do Porto 
e a democracia

Um discurso de defesa das instituições não estaduais que passe pela diabolização do Estado social é um discurso extremista que se vira contra quem o profere

Há uns dias, D. Manuel Linda, bispo do Porto, em entrevista ao Público causou polémica ao afirmar que “o Estado não é pessoa fiável”. As reações foram epidérmicas. Portugal tem memória fresca da noite escura sem Estado social, da miséria, do País da caridade, pelo que muitos se ergueram em defesa dos serviços públicos. 

Ninguém nega as dificuldades que esses serviços atravessam nem a importância das instituições particulares de solidariedade social, mas um discurso de defesa das instituições não estaduais que passe pela diabolização do Estado social é um discurso extremista que se vira contra quem o profere. 

Para mais, exigir financiamento das instituições que trabalham sob o chapéu da Igreja com o argumento de que o Estado não é fiável é um desplante. Em última análise, laborando no magnífico argumento até à exaustão, que modelo de democracia defende o bispo do Porto? Aquele em que o Estado, essa pessoa não fiável, recua nas suas funções sociais e as entrega à fiável ICAR?

Não há instituições perfeitas, mas continuo a defender que o principal garante da igualdade material em todos os seus domínios seja o Estado democrático que emana de todos nós. Chama-se democracia, pois.

A má relação do bispo do Porto com a democracia também se manifesta quando duvida da “legitimidade social” dos deputados para legislar em matéria de eutanásia. A esse respeito, de resto, junta-se à orbe dos desonestos intelectuais que negam um debate de ideias esclarecedor, preferindo comparar quem defende a despenalização da morte assistida em situações especiais com Hitler, lembrando que o facínora não estava sozinho quando decidiu que determinadas vidas não eram dignas de serem vividas. 

Começando pela “legitimidade social”, convém recordar a essência representativa dos deputados, eleitos pelo Povo, sendo a matéria da eutanásia, por excelência, uma matéria da competência reservada do Parlamento. Pode concordar-se ou discordar-se da despenalização da eutanásia em situações especiais, estamos cá para o debate, mas negar-se que a Constituição atribui à Assembleia da República mandato para legislar, querendo, sobre a matéria, dizendo sim ou não, é estar fora da democracia. 

Quando discutimos a eutanásia na última legislatura, ouvimos, ao longo de três anos, num debate muito rico, argumentos a favor e contra num quadro de racionalidade que a todos aproveitou. Na margem ficaram aqueles que desqualificaram o debate, acusando os defensores da eutanásia de serem como Hitler, de quererem decidir que há vidas mais dignas do que outras, de quererem “matar” velhos e doentes. 

Ora, o que estamos a fazer é precisamente partir do princípio de que todas as pessoas têm a mesma dignidade e autonomia nessa dignidade.

O Estado não pode rejeitar a autonomia das pessoas para fazerem as suas escolhas pessoais de acordo com os seus valores ou, caso contrário, teríamos uma conceção moral dominante imposta ao resto da sociedade, precisamente como acontecia no Terceiro Reich. 

Quando se pretende regular as situações especiais em que a prática da eutanásia não é punível, o que se está a fazer é a reconhecer o que decorre dos valores e princípios constitucionais. Isto é, não está em causa um desrespeito da vida por parte do Estado, porque é o próprio sujeito autónomo que deseja a eutanásia, sujeito esse que, tendo liberdade para tomar decisões vitais ao longo da vida sem possibilidade de interferência por parte do Estado, também tem liberdade para ter um espaço legalmente reconhecido de decisão quanto à sua própria morte. 

A pessoa que pede a eutanásia está numa situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, pelo que precisa, justamente, de ajuda para concretizar um ato que não deixa de ser, absolutamente, uma decisão individual. 

Por outro lado, a Constituição tem parâmetros de constitucionalidade – o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, este último fundador da República – que nos obrigam a fundamentar a não violação da Lei Fundamental muito para além de uma alegação de liberdade geral de ação que não se aplica ao caso, dada a circunstância específica do doente. 

Para que a intervenção, a pedido, de profissionais de saúde seja despenalizada sem risco de inconstitucionalidade por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, a lei tem de ser rigorosa.

Tudo isto pode e deve ser objeto de debate. Caricaturar e falsear o debate é um péssimo serviço à democracia.

* Deputada pelo PS na Assembleia da República

IN "VISÃO"
07/01/20

.

Sem comentários:

Enviar um comentário