07/01/2020

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São Tomé processa investigadora por estudo sobre consumo de álcool

Investigação revela dados "preocupantes" sobre consumo de álcool entre grávidas e crianças com idade escolar e autora alerta para inação do Estado. Governo diz que é "mentira".

O Governo de São Tomé e Príncipe anunciou, esta terça-feira, que vai apresentar uma queixa-crime contra uma investigadora portuguesa que publicou um estudo revelando o consumo de álcool por crianças e grávidas e denunciando a inação do Estado e o apoio à importação de produtos alcoólicos enquanto taxa o leite.
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CIÊNCIA E HUMANIDADE
O trabalho de Isabel de Santiago, investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), é uma "autêntica e vergonhosa mentira", que causa "danos irreparáveis à imagem do país", lê-se num comunicado divulgado pelo porta-voz do executivo, Adelino Lucas. Além de denunciar "comportamentos de pessoas com interesses inconfessáveis políticos", diz que a investigação "cai em saco roto quando os dados estatísticos referem que nunca se importou e se tem vindo a consumir tanto leite e refrigerantes como nos últimos tempos". O executivo não sustenta, porém, estes dados.

Álcoois caseiros
O problema do alcoolismo em São Tomé não será de agora. Quando chegou ao arquipélago, há 26 anos, Manuel António, hoje bispo da diocese de São Tomé e Príncipe, encontrou um país com "uma forte tradição de consumo de álcool" transversal a todas as classes sociais e faixas etárias. "Infelizmente, este problema sempre existiu", lamenta.

O estudo da investigadora da FMUL, incidindo sobre o consumo de álcool e drogas em meio escolar em São Tomé, e divulgado há poucos dias, mostra que o problema é hoje "bem mais preocupante". Até porque "nada está a ser feito para o impedir", critica Isabel de Santiago.

A investigação mostra que muitas mulheres bebem durante a gravidez e várias crianças nascem com síndrome alcoólico fetal. Nos próximos 25 anos, antevê, "metade dos jovens pode morrer com cirroses e cancro do fígado".

Outra das conclusões é que a importação de vinho é "600% superior à do leite" e que há crianças a beberem cacharamba (aguardente de cana), em vez de água ou leite, antes de irem para a escola como forma de desparasitrem os intestinos. "Há uma enorme desnutrição, é um problema sério de saúde pública", lamenta.

O álcool é mesmo o principal produto importado pelo país, segundo o guia do investidor de São Tomé, que não contabiliza "os álcoois tradicionais que são produzidos por pessoas nas comunidades e vendidos de forma ilícita", alerta ainda Isabel de Santiago. "Nada disto é controlado pelas autoridades de saúde pública, levando a que as crianças e jovens consumam de forma mais excessiva".

São Tomé também importa muito açúcar, "mas a maior parte é transformado pelos produtores de aguardente em álcool, altamente nocivo para a saúde", explica a também professora na FMUL. Análises feitas pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil a amostras de álcoois, recolhidas durante os meses de observação junto dos produtores artesanais, concluíram que "são produzidos sem controlo sanitário e alguns além do teor elevadíssimo de álcool etílico contêm metais pesados", diz ainda.

Perante a reação do executivo, Isabel de Santiago garante ser uma tentativa de "esconder um problema muito grave". "Não vale a pena tentarem abafar, as conclusões são baseadas em evidência científica. Este Estado está a matar o povo. É um estudo que incomoda muita gente, mas não vou desistir", promete, argumentando que o país tem incentivado o consumo de álcool com a tomada de decisões políticas como "a redução da taxa de importação do álcool e a cobrança de taxas de desalfandegamento pelo leite doado pelo banco de leite de Frei Fernando Ventura para crianças carenciadas". "É desumano e é um crime", acusa.

"Um problema de saúde pública" com décadas
O fenómeno acontece há vários anos, mas ainda não tinha sido estudado a fundo. Só em 2013, juntamente com outros professores e especialistas, a investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) fez um inquérito nas ilhas de São Tomé e Príncipe sobre o consumo de álcool e drogas em meio escolar. Na altura, o atual primeiro-ministro são-tomense, Jorge Bom Jesus, era Ministro da Educação, e autorizou a realização da investigação.

Segundo um documento a que o JN teve acesso, Jorge Bom Jesus não só permitiu o avanço do estudo, como disse que "acolhia com muito interesse" este projeto da Universidade de Lisboa. "Considerando o alerta e notícias que indicam consumos de substâncias nocivas (lícitas e ilícitas) neste país, as medidas de prevenção em meio escolar são cada vez mais necessárias", escrevia na altura.

Um membro do anterior executivo, Roberto Raposo, que também deu luz verde ao estudo da Universidade de Medicina de Lisboa, ouvido pelo JN, confirma que os dados são preocupantes e que têm de ser tomadas medidas de prevenção, "que não estão a ser tomadas". "A incidência de álcool na população são-tomense é um problema grave de saúde pública há muito tempo", denuncia o ex-ministro da Justiça.

O bispo da diocese de São Tomé e Príncipe explica que o consumo de álcool em São Tomé é mesmo "uma questão cultural", muito ligada à afirmação de poder nas classes sociais mais altas. Já as classes mais baixas "consomem álcool de pior qualidade, que acaba por ter efeitos mais nefastos, principalmente nas crianças", lamenta. "A pobreza em que as pessoas vivem também não ajuda. Não têm esperança no futuro e, muitas vezes, o álcool também serve para esquecer", sublinha ainda.

Manuel António diz que já foram realizadas algumas campanhas de sensibilização, nomeadamente pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) que "têm tido algum eco". "Já há alguma consciência de que dar álcool às crianças é algo mau. Mas tem de se fazer muito mais, temos de encontrar outros meios para lutar contra o problema", reconhece. "Uma novidade deste estudo é a composição do álcool, com substâncias tóxicas e metais pesados, que estará a ser consumido pelos mais pobres. Ainda não havia estudos sobre isso e preocupa-me muito", admite ainda.

* A corrupção não anda de mão dada com a ciência!

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