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Super-heróis a confrontarem
os seus traumas
A elevada criatividade na ficção televisiva permite-nos hoje, com base numa obra-prima literária dos anos 80, explorar as questões sociais e políticas mais fraturantes do nosso tempo.
Na era em
que vivemos, aparentemente tão obcecados com histórias de super-heróis
de todos os tipos e feitios, importa que a nova adaptação televisiva de
“Watchmen” (HBO) assuma como sua missão a constante desconstrução social
e psicológica dos traumas (individuais, mas também nacionais e até
globais) refletidos nas máscaras dos super-heróis.
Quando foi
publicada, em 1986, a BD “Watchmen”, de Alan Moore e Dave Gibbons,
apresentou-nos a uma nova forma de contar histórias sobre ‘pessoas
mascaradas’, numa realidade alternativa que desejava expor as ansiedades
e receios da América dos anos 80, um país ainda a braços com a Guerra
Fria e a ameaça nuclear, mas que vencera a guerra do Vietname e não fora
exposto ao escândalo Watergate.
Em “Watchmen”, os super-heróis
não detêm superpoderes, são apenas vigilantes, guardiões mascarados, com
exceção de Dr. Manhattan, que adquiriu as características de um deus
após um acidente de laboratório. Alguns dos super-heróis têm doenças
mentais, outros são agressores sexuais e outros ainda são vítimas desses
agressores, destruindo assim o heroísmo clássico e a linear distinção
entre bem e mal que preencheu muitas páginas de BD antes da chegada de
Alan Moore.
Na sua essência, estas pessoas mascaradas veem-se
confrontadas com situações de caos urbano e apocalipse iminente que as
força a escolhas morais dilacerantes.
E quais são as grandes
questões do nosso tempo que a nova adaptação televisiva da série coloca
no centro das suas preocupações? O agravar de tensões raciais numa
altura em que ressurge o nacionalismo e o fascismo. Assistir ao
desenrolar da história de “Watchmen” é lembrarmo-nos que “Black Lives
Matter” e que o racismo permanece forte, mesmo entre aqueles que juraram
proteger vidas.
Nesta realidade alternativa, o presidente é o
ator Robert Redford que decidiu instituir compensações às vítimas do
massacre de Tulsa de 1921 e os seus descendentes – um evento verídico e
que foi durante muito tempo eliminado de manuais de História. Se há
questão que a série ilustra particularmente bem é a recusa do racismo em
morrer, numa sociedade onde se torna difícil distinguir os verdadeiros
polícias dos verdadeiros criminosos.
A elevada criatividade na
ficção televisiva permite-nos hoje, com base numa obra-prima literária
dos anos 80, explorar as questões sociais e políticas mais fraturantes
do nosso tempo. E não se pense que este é um fenómeno que se limita às
fronteiras dos Estados Unidos. A capacidade que a indústria de
entretenimento norte-americana tem de levar algumas das suas melhores
criações aos quatro cantos do mundo permite agitar consciências,
ajudar-nos a desconstruir tudo o que aprendemos sobre os nossas próprias
lendas e mitos e levar-nos a questionar a forma como encaramos hoje os
legados históricos.
Em Portugal, a julgar pelas mais recentes
discussões polarizadas em torno do legado histórico da colonização e
descolonização, e a questão racial subjacente, temos um caminho muito,
muito longo a percorrer até sermos capazes de confrontar, com
honestidade, os nossos traumas.
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
20/12/19
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