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IN "esquerda.net"
16/12/19
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Nascer e morrer em Portugal
Em 2018 morreram 17 mulheres durante a gravidez, parto e puerpério. Quase o dobro do que no ano anterior
O movimento de Humanização do Parto em Portugal denuncia há anos as
condições precárias de constante violação dos direitos humanos da
parturiente no processo de acompanhamento da gravidez e atendimento ao
parto, mas este tema nunca teve o devido eco no debate público ou nas
estratégias políticas. Como nos diz Graça Freitas, Diretora-Geral da
Saúde (DGS), no Retrato da Saúde 2018 (link is external),
“Se nos anos 60 e 70 do século passado nos debatíamos por reduzir
elevadas taxas de mortalidade infantil e de mortalidade materna, que nos
situavam entre os países com os piores indicadores da Europa Ocidental,
hoje temos esses valores ao nível dos melhores do mundo por estarmos
num país com bons resultados no que toca aos números de mortalidade
materna, mortalidade perinatal e neonatal.” A frase é bonita, e
verdadeira, no que toca à comparação dos números portugueses com os de
países como o Peru, Bolívia, Somália, Moçambique, Paquistão, Índia… mas
na Europa, minhas amigas, ainda nem chegámos a meio da tabela1.
O que são 17 mulheres? Muito? Pouco? Será que são finalmente o número suficiente para se abrir um debate sério?
Infelizmente eu diria que não. Em maio, Graça Freitas afirmava (link is external)
que “Temos de estar preparados para um aumento das mortes maternas”,
quando os números de 2018 ainda não eram conhecidos publicamente, mas
ninguém acredita que não fossem do conhecimento da DGS. É criado um
grupo de trabalho para estudar o aumento das mortes maternas, quando na
verdade este número tem vindo a aumentar (link is external) já desde 2012. É aquela sensação, muito portuguesa, de que andamos sempre a “correr atrás do prejuízo”.
As causas apontadas para o aumento de mortes maternas, no calor da
divulgação desta notícia, foram desde as greves da classe de enfermagem,
a carência das equipas obstétricas, o aumento da idade das
parturientes, não deixam de ser fatores plausíveis, mas num país com um
modelo de acompanhamento da gravidez e atendimento ao parto altamente
medicalizado, com uma taxa de cesarianas (link is external) de 34,1%, uma taxa de episiotomia (link is external) acima dos 70%, receio que vamos continuar à procura de “desculpas” e não de soluções.
Ler as recomendações da DGS e da Organização Mundial da Saúde (OMS) é
como ler um maravilhoso livro de poesia. Quando chegará a teoria à
prática diária do nosso país? Olufemi Oladapo, do Departamento de Saúde
Reprodutiva da OMS, diz que “A gravidez não é uma doença e o nascimento é
um fenómeno normal, que se pode esperar que a mulher complete sem
intervenção”. Mal sabe ele que em Portugal ainda se fazem manobras de
Kristeller, mulheres a receber ocitocina intravenosa a julgar que é
apenas soro, mulheres a viver todo o trabalho de parto com os seus
companheiros na sala de espera sem poderem entrar. Enfim, e estou a dar a
versão suave, porque o rol de abusos não se fica por aqui.
As carências do SNS são por demais conhecidas. Sabemos que também na
área do nascimento, os utentes têm vindo a aumentar nas unidades de
saúde privada. Mas o que me parece que ninguém anda a falar é da
violação grosseira dos direitos da mulher na gravidez e parto. Seja no
público ou no privado. E já é tempo!
Em 2016 a Associação dos Direitos pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto publicou um relatório das “Experiências de Parto em Portugal (link is external)”.
Nesse documento podemos ler vários relatos, “A indução custou e a
anestesista foi muito ríspida e inconveniente.” “Enfermeiras rudes e com
muita falta de profissionalismo, aquele que deveria ser um momento
único na minha vida transformou-se em momentos de muita dor e angústia.
(…) Em contrapartida, os médicos foram excelentes.” “Apenas queria dizer
que quando respondi de forma positiva relativamente aos profissionais
de saúde estava a considerar as parteiras porque a médica foi mesmo
bruta e insensível.”
Assim se vê que o problema não está (só) nos obstetras, nem (só) nas
enfermeiras, nem (só) nos anestesistas, mas no próprio modelo de
atendimento. Hoje em dia já há profissionais a trabalhar de acordo com
as recomendações da OMS e segundo os mais atuais princípios da Medicina
Baseada em Evidência Científica, mas é preciso sorte para apanhar as
equipas certas.
As mulheres em Portugal têm cada vez menos filhos e cada vez mais
tarde. E quando os têm, passam por processos altamente violentos,
físicos e emocionais. Isto tem um nome: violência obstétrica. É disto
que devíamos estar a falar.
No programa eleitoral do Bloco de Esquerda (link is external)
refere-se que a promoção do parto respeitado pode começar pelo
enquadramento legislativo da violência obstétrica. E eu concordo. Não
porque encher os tribunais de profissionais de saúde venha resolver
alguma coisa, mas acima de tudo, para libertar as mulheres do ónus dessa
responsabilidade.
Que comece o debate! Que neste assunto o Interior não está do Avesso, mas completamente em conformidade com todo o país.
1- https://www.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2018/04/RETRATO-DA-SAUDE_2018_compressed.pdf (link is external)
* Engenheira agrícola.
Pertence às Mães d’Água
IN "esquerda.net"
16/12/19
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