06/12/2019

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HOJE NO
"OBSERVADOR"
Tribunal reconhece idoneidade financeira
.a gerente com cadastro por seis crimes 
de abuso de confiança fiscal

Tribunal quer obrigar Banco de Portugal a dar idoneidade a gerente condenado por abuso de confiança fiscal entre 2015 e 2017. Gestor financeiro não pode ficar "impedido para sempre", diz juíza.

Uma decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga pode vir a revolucionar a atividade de supervisão prudencial do Banco de Portugal. Está em causa uma decisão judicial que obriga o Banco de Portugal a reconhecer idoneidade a um intermediário financeiro de uma pequena loja de electrodomésticos mesmo depois de ter ficado provado que o gestor foi condenado judicialmente por seis crimes de abuso de confiança contra a administração fiscal e contra a Segurança Social praticados entre 2015 e 2017.
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O tribunal reconheceu o trânsito em julgado das condenações, logo o cadastro criminal, mas alega que “não se pode admitir que a mera condenação marque de tal modo a vida económica de uma entidade que esta fique impedida para sempre”, dando assim cobertura à atenuante invocada pelo gestor de que os crimes foram praticados durante um “período em que houve uma grave crise económica”, lê-se na sentença judicial de 20 de outubro de 2019 assinada pela juíza Telma Silva. O Banco de Portugal já recorreu desta decisão para o Tribunal Central Administrativo Norte.

A instituição liderada por Carlos Costa, seguindo a lei nacional e as práticas do Banco Central Europeu, tem aplicado critérios restritivos na atribuição (ou na retirada) da idoneidade a banqueiros, bem como a intermediários financeiros, que sejam suspeitos ou estejam indiciados de crimes económico-financeiros. Por exemplo, Ricardo Salgado, ex-presidente executivo do BES, bem como outros ex-administradores do Grupo Espírito Santo, perderam a idoneidade para o exercício de funções em instituições de crédito antes de o próprio Banco de Portugal os condenar em três processos de contra-ordenação por violação do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras.

No caso específico de Ricardo Salgado, a perda de idoneidade verificou-se em 2014 e antes de Salgado ter sido constituído arguido nos processos criminais da Operação Marquês, Universo Espírito Santo e caso EDP.

O caso do gerente da loja dos electrodomésticos
José Domingues Araújo é sócio-gerente de uma loja de electrodomésticos em Braga chamada Vila Electrodomésticos. Como a sua empresa vendia igualmente serviços aos seus clientes para financiar a compra de electrodomésticos, Araújo necessitava da autorização do Banco de Portugal para exercer essa atividade como intermediário de crédito, tendo iniciado o processo junto do supervisor da banca no dia 4 de julho de 2018.

Analisado o certificado de registo criminal que todos os ‘candidatos’ ao registo no Banco de Portugal são obrigados a entregar, os técnicos do Departamento de Supervisão constataram que José Domingues de Araújo tinha o seguinte cadastro:
  • Condenado em abril de 2015 pela “prática de um crime de abuso de confiança fiscal com pena de prisão suspensa de dois anos”;
  • Condenado em julho de 2015 pela “prática de um crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social ao cumprimento de pena de 180 dias de multa à taxa diária de 10 euros”;
  • Condenado em outubro de 2015 pela “prática de um crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social ao cumprimento de pena de 180 dias de multa à taxa diária de 10 euros”;
  • Condenado em maio de 2016 pela “prática de um crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social ao cumprimento de pena de 180 dias de multa à taxa diária de 10 euros”;
  • Condenado em maio de 2017 pela “prática de um crime de abuso de confiança fiscal ao cumprimento de pena de 180 dias de multa à taxa diária de 10 euros”;
  • Condenado em junho de 2017 pela “prática de um crime de abuso de confiança fiscal com pena de prisão suspensa de dois anos”;

Regra geral, o crime de abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social significa que o gerente da sociedade apropriou-se indevidamente de dinheiro da retenção na fonte ou de contribuições para a Segurança Social feitas pelos seus trabalhadores. Na sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga não está claro qual é o valor total retido entre 2015 e 2017 mas este crime de abuso de confiança só se consuma quando o valor retido supera os 7.500 euros.

Com base neste registo criminal, os técnicos do Banco de Portugal concluíram que José Domingues Araújo não tinha “reconhecida idoneidade” para exercer a atividade de intermediário de crédito, daí a recusa de autorização que foi dada à sociedade Vila Electrodomésticos gerida por Domingues Araújo. A decisão final foi-lhe comunicada a 9 de janeiro de 2019.

O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras impõe ao Banco de Portugal que tenha em conta que “a acusação, pronúncia ou condenação em Portugal ou no estrangeiro” por diversos ilícitos criminais, entre os quais “crimes fiscais”. E porquê? Porque o supervisor da banca está obrigado a avaliar de forma preventiva as “garantias que a pessoa em causa oferece” para “uma gestão sã e prudente” de uma instituição de crédito ou financeira, tendo em vista, de modo particular, a segurança dos fundos confiados à instituição”, fazendo um juízo sobre o passado e uma previsão sobre o comportamento futuro, como estipula a lei. Neste contexto, eventuais condenações criminais têm obviamente relevância.

A lei determina ainda que uma condenação com trânsito em julgado não obriga automaticamente à perda da idoneidade, devendo o Banco de Portugal fazer essa avaliação tendo em conta fatores como a relevância do ilícito para a atividade financeira, assim como o carácter reiterado — o que se verificou com Domingues Araújo. Isto é, na análise que o Banco de Portugal faz em todos os processos de atribuição ou revisão de idoneidade a existência de mais do que uma condenação é considerada como muito relevante.

A defesa de Araújo
A sociedade Vila Electrodomésticos enquanto pessoa coletiva, e não José Domingues Araújo, recorreu ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga para impugnar e tentar anular a decisão do Banco de Portugal. Quer junto dos técnicos do supervisor da banca, quer junto da juíza Telma Silva, a quem foi distribuída a sua queixa no tribunal de Braga, o gerente da loja de electrodomésticos alegou que não foram tidas em conta “as circunstâncias que estiveram na origem dos processos crime” pelos quais foi condenado Araújo.

E que circunstâncias eram estas? Desde logo, o facto de os crimes de abuso fiscal e contra a Segurança Social terem sido praticados por Domingos Araújo enquanto sócio-gerente de outra sociedade: a Cidadela Electrónica, Lda.

Por outro lado, tais crimes deveram-se, segundo explicação dada ao Banco de Portugal a 7 de dezembro de 2018, “a dificuldade, logo a seguir à grave crise económica ocorrida, em que a empresa teve a necessidade de recorrer a um Plano Especial de Revitalização para assim conseguir acomodar os seus pagamentos aos credores”, tendo sido igualmente salientado que “a empresa mantém o pagamento dos acordos em dia”.

O que decidiu o tribunal
Recorrendo a um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de maio de 2005 — acórdão este que analisa um enquadramento legal ao nível do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras muito diferente do atual —, a juíza Telma Silva acabou por dar razão aos argumentos apresentados pela Vila Electrodomésticos.

“Não obstante ter sido alegado pela Autora [Vila Electrodomésticos] que tais crimes ocorreram, quanto a outra sociedade e num período em que houve grave crise económica, o Réu [Banco de Portugal] entende que tal não era suficiente para permitir concluir pela idoneidade” de José Domingues Araújo.

Ora, de acordo com a juíza Telma Silva, “a mera condenação por crimes fiscais não é adequada a justificar a recusa de autorização para exercer actividade de intermediário de crédito.” E porquê? Porque o Banco de Portugal não equacionou “as condenações com as demais circunstâncias, como é devido.” Isto é, e tendo em conta os argumentos utilizados pela sociedade de Domingues Araújo, não teve em conta que os crimes ocorreram durante “uma grave crise económica”.

Além do mais, acrescenta a magistrada do Tribunal Administrativo e Fiscal e de Braga, o Banco de Portugal deveria ter tido em consideração que:
  • “O que está em causa é o exercício de intermediário de crédito a partir de 2019”. Ou seja, o Banco de Portugal não pode ter em conta factos que ocorreram no passado — o que contraria não só a visão da lei, como também as regras do Banco Central Europeu;
  • Em relação a 2019, diz a juíza, o Banco de Portugal nada imputa a José Domingues Araújo;
  • “Os crimes estão circunscritos a um período de tempo preciso (2015, 2016 e 2017)”. Isto é, o último crime foi praticado cerca de dois anos antes da decisão do Banco de Portugal;
  • “Era outra a sociedade que estava em causa [a Cidadela Electrónica, Lda] e a mesma viu aprovado um plano de revitalização”;
  • E, finalmente, “nada vem demonstrado quanto à reiteração (por mais anos do que 2015 a 2017), nem quanto ao benefício que o sócio-gerente haja retirado dos crimes cometidos”.
Conclusão da juíza Telma Silva: “não se nega que a existência de condenação por crimes fiscais é grave e deve ser devidamente ponderada quando se trata de avaliar a conduta (idónea) de um agente”, mas a magistrada considera que não é admissível que tal ponderação seja feita exclusivamente por uma “mera condenação em processo crime por abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social (ainda que em número de seis) marque, de tal modo, a vida económica de uma entidade, que esta fique impedida para sempre”.

Assim, a magistrada decidiu anular o ato de recusa do Banco de Portugal em autorizar o exercício de funções de José Domingues Araújo como intermediário de crédito e reconheceu idoneidade à empresa Vila Electrodomésticos.

Quais sãos as consequências para o futuro?
O primeiro problema desta decisão, a qual já teve um recurso apresentado pelo Banco de Portugal junto do Tribunal Central Administrativo Norte, é que condena o Banco de Portugal a proceder ao registo da Vila Electrodomésticos como “autorizada” para o exercício como intermediário de crédito e a reconhecer a idoneidade da sociedade — quando o que está em causa é a idoneidade de uma pessoa singular, Domingues Araújo, sócio-gerente daquela sociedade.

Se o Tribunal Central Administrativo Norte não tiver sucesso, o Banco de Portugal pode vir a ter um problema sério pela frente. Em primeiro lugar, porque o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo pode ser rejeitado liminarmente por a situação já ter sido apreciada em 2005 no acórdão que é citado pela juíza Telma Silva.

Por outro lado, esse acórdão de 2005 do Supremo Tribunal Administrativo não tem em conta a grande evolução legal e regulatória que se verificou no setor financeiro após a crise financeira de 2008/2010. Muito por influência do Banco Central Europeu e de diretivas da Comissão Europeia, a legislação portuguesa passou a ter em conta a questão da análise preventiva das garantias que os titulares de órgãos sociais de instituições de crédito e das sociedades financeiras oferecem para uma gestão sã e prudente dos capitais que gerem.

Por outro lado, a alteração de 2014 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras reforçou os critérios da idoneidade, tornando a malha muito mais apertada e permitindo ao Banco de Portugal agir como tem agido ao retirar ou não atribuir idoneidade a várias dezenas de banqueiros e gestores de sociedades financeiras.

É precisamente esta a questão: se outros tribunais administrativos seguirem um entendimento semelhante ao da juíza Telma Silva, tal poderá fazer com que, por exemplo, administradores a quem fosse retirada a idoneidade pelo Banco de Portugal, pudessem continuar em funções, já que a decisão do supervisor seria anulada

Um exemplo prático: se Ricardo Salgado tivesse tido uma decisão semelhante à de José Domingues Araújo — e o ex-presidente executivo do BES também argumentou que as dificuldades da crise financeira e das dívidas soberanas estiveram na origem da derrocada do Grupo Espírito Santo — ainda hoje seria líder da Comissão Executiva do BES.

* Um excelente trabalho de LUÍS ROSA

** Se a Justiça tem sido tão tolerante com agressores violentos de mulheres e pedófilos porque não ser com um reles vigarista.

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