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IN "PÚBLICO"
10/12/19
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Castração química
ou racionalidade castrada?
André Ventura sabe que o proposto nunca pode ser aprovado e, se o fosse, o Tribunal Constitucional lá estaria para não permitir tamanha monstruosidade. Fá-lo então porque pretende ganhar voto fácil, apelando ao sentimento mais básico de qualquer ser humano, que é a natural repulsa perante estes horrendos crimes.
Cumprindo uma das mais emblemáticas medidas do seu programa
eleitoral, André Ventura deu entrada no Parlamento, a 6/12, do projecto
de lei n.º 144/XIV/1.ª, que deve se lido por todos e sujeito a um amplo
debate.
Pretende o político que Portugal se junte a países
como a Indonésia, Rússia, Polónia, alguns Estados dos EUA, como o
Alabama, onde se impõe como pena acessória – ao lado da principal, de
prisão –, de aplicação obrigatória, a castração química, que define como
“a forma temporária de castração, suportada pela indução de
medicamentos hormonais e medicamentos inibidores da libido, aplicada em
estabelecimento médico devidamente autorizado e credenciado para o
efeito”, sempre que haja reincidência ou o contexto dos crimes seja “de
especial perversidade ou censurabilidade”, sujeito a um conjunto de
exemplos-padrão como sucede hoje com o homicídio qualificado. Propõe a
sua aplicação aos crimes de abuso sexual de criança e de menores
dependentes.
Ainda da leitura do preâmbulo é patente que Ventura parece ignorar a
existência, no nosso ordenamento jurídico-penal, de medidas de segurança
baseadas na perigosidade do agente e que, cumpridos certos requisitos,
podem fazer com que alguém passe o resto da vida em estabelecimento
adequado se essa perigosidade se mantiver.
Este projecto é totalmente inconstitucional, de aplicabilidade
prática duvidosa e configura um monumental retrocesso civilizacional,
patente na paupérrima exposição de motivos, para o que bastará ver as
referências quase nulas, retirada de blogs, em termos de literatura científica. Estamos conversados sobre a preocupação científica de Ventura.
Uma das consequências deste primarismo é a excessiva e caricatural
simplificação da realidade. O deputado não pode ignorar a profunda
discórdia existente na comunidade médica sobre o tema.
Não sou médico nem psicólogo, mas uma rápida pesquisa permite aceder a textos científicos como o de Joo Yong Lee/Kang, no Journal of Korean Medical Science (2013, 28(2): 171–172), intitulado The role of central and peripheral hormones in sexual and violent recidivism in sex offenders,
onde se lê que “uma clara relação causa-efeito entre os níveis de
testosterona e as ofensas sexuais permanece incerta” (veja-se, também
Kingston et al., no Journal of American Psychiatry Law,
2012; 40(4): 476-85), onde também se lê que a castração, por si só, é
insuficiente e deve ser acompanhada por meios psicológicos. Acresce que o
que vem proposto tem como efeitos secundários osteoporose, doenças
cardiovasculares, dificuldades no metabolismo da glicose e dos lípidos,
depressão, infertilidade e anemia. E estamos a falar de tratamentos que
duram entre três a cinco anos, o que faz aumentar os efeitos
secundários.
O que agora se propõe é materialmente inconstitucional, por violar o
art. 25.º, n.º 2: “ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou
penas cruéis, degradantes ou desumanos” e o art. 30.º, n.º 1, ambos da
Constituição: “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas
ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração
ilimitada ou indefinida” (em que se pode traduzir a castração). Viola
ainda uma série de instrumentos internacionais a que estamos vinculados:
p. ex., o art. 5.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
o art. 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e o art. 4.º da
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Não há dúvida que uma
solução como esta, a que tecnicamente chamamos na teoria dos fins das
penas de “inocuização”, priva o condenado dos seus direitos
fundamentais, fazendo-nos recuar para a noite medieval para onde Ventura
parece desejar voltar, mal-grado começar a exposição de princípios do
projecto de lei com uma inusitada referência ao Iluminismo.
E
pergunta-se ainda: o que entende o deputado por “reincidir” para efeitos
do seu projecto? O que está preceituado nos artigos 75.º e 76.º do
Código Penal? E basta um mero acto anterior para se inibir alguém de
parte do seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade humana,
como é a vida sexual?
O discurso populista é o mais fácil e estou em crer que Ventura conhece a
Constituição e que bem sabe que o proposto nunca pode ser aprovado e
se, por absurdo, o fosse, o Tribunal Constitucional lá estaria para não
permitir tamanha monstruosidade. Fá-lo então porque pretende ganhar voto
fácil, apelando ao sentimento mais básico de qualquer ser humano, que é
a natural repulsa perante estes horrendos crimes.
Porém, é essencial que a matéria criminal seja pensada sempre com
muita informação científica – coisa que Ventura parece querer ignorar – e
com uma adequada ponderação de interesses. Todos condenamos os crimes
sexuais contra menores. Agora, num Estado de Direito democrático não
vale tudo para combater o delito. Ventura quer que Portugal se aproxime
do perigoso conceito de Jakobs do “Direito Penal do inimigo” e trata
estes ofensores sexuais como animais, na senda daquele penalista alemão.
São por demais conhecidas as objecções dogmáticas, práticas,
filosóficas a conceitos como este.
Contra o obscurantismo de um populismo primário, tenhamos a ciência e a Razão, a argumentação ponderada, o rule of law,
porque o discurso fácil de Ventura é uma espécie de receita de gelatina
a que basta juntar água. Tomara que a realidade fosse assim tão
simples! Ou Ventura acha que é um ungido divino que vê o que ninguém vê,
que pela primeira vez pensa a sério (?) sobre as questões penais e que a
intransigente defesa dos direitos fundamentais que o processo penal
deve garantir é uma espécie de luxo? Ou para ele será antes lixo?
* Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
IN "PÚBLICO"
10/12/19
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