17/11/2019

PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS

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Coitado do 
Álvaro de Campos...

Cansa, tanta hipocrisia debitada sobre o recém-nascido resgatado por um sem-abrigo. Só muitos dias mais tarde, quando a Embaixada de Cabo Verde anunciou que iria cuidar da mãe, é que a saúde dela foi notícia.

Não há como esconjurar a culpa pela indiferença cúmplice que consente tamanho horror. Nem espanta esta súbita ilustração, real e cruel, do cenário desolado que Pedro Costa nos convida a contemplar num filme ainda em exibição nas salas de espetáculos... Será que estavam certas as conterrâneas de Vitalina Varela que a esperavam no aeroporto para lhe dizer que não havia aqui lugar para ela?
O que mais nos faltará saber?

Na abertura de um colóquio sobre história militar, o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, destacava a preocupante analogia entre os desafios que ameaçam as democracias do nosso tempo e a desestruturação social e política que, após a I Guerra Mundial, levou à ascensão dos fascismos na Europa e implantou em Portugal a mais duradoura ditadura do século XX. Esse tempo inscreveu a sua marca nas artes e na literatura. Por exemplo, na poesia de Fernando Pessoa, o autor da epopeia esotérica, "Mensagem", expoente máximo daquilo a que chamou "nacionalismo místico". Autor também de "O menino de sua mãe", o poema mais amargo alguma vez escrito em língua portuguesa acerca da separação e morte, acerca da guerra, das "malhas que o império tece".

Álvaro de Campos (heterónimo de Pessoa), poeta imaginado, cruza-se numa rua da Baixa com "um vadio e pedinte" por profissão. Então como hoje, o mesmo universo fragmentado, comunidades onde se romperam elementares laços de solidariedade, a mesma vulnerabilidade, a mesma inquietação perante mudanças sociais profundas, um futuro incerto. O individualismo estético de Álvaro de Campos, embriagado de lucidez, assoma ali com patética ironia:
"Coitado do Álvaro de Campos! / Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações! / Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia! / Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos, / Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita, / Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele / Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão. // Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa! / Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo! // E, sim, coitado dele!/ Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam, / Que são pedintes e pedem, / Porque a alma humana é um abismo. // (...) Já disse: sou lúcido. / Nada de estéticas com coração: sou lúcido./ Merda! Sou lúcido." (Cruzou por mim, Ficções do Interlúdio)
 
Deputado e professor de Direito Constitucional

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
14/11/19

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