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Sem-abrigo sem ficção
Dentro
de cada ser humano há um romancista pronto a emergir. O que explica a
tendência que todos temos para compor histórias, preencher rapidamente
os vazios em notícias ou factos só parcialmente públicos, tirar
conclusões e fazer juízos definitivos.
O
caso do bebé abandonado no lixo por uma sem-abrigo foi um exemplo
perfeito dessa tendência, com muita gente a dividir-se entre a
condenação implacável da mãe e a consideração de que o Estado falhou por
não conseguir referenciar e apoiar a jovem.
O
Estado é muitas vezes a figura abstrata que se usa por tudo, mas no
caso concreto dos sem-abrigo vale a pena olhar com atenção para o que
tem sido o papel das entidades oficiais. Em julho o Governo prometeu 131
milhões para a integração de sem-abrigo, mas quer as autarquias de
Lisboa e Porto, quer as associações, receberam até agora zero. Nem a
insistência permanente do Presidente da República nesta causa levou o
Executivo a ser mais ativo.
Ainda assim, os dados detalhados que o JN
hoje revela sobre o Porto mostram que muito mudou no último ano. A
realidade é agora conhecida com detalhe, pondo a nu números muito
superiores a anteriores estimativas. Aumentaram as estruturas de
resposta e foram plenamente integradas 60 pessoas. Município e
organizações não governamentais têm o papel principal, como seria
inevitável, mas destacam outro ingrediente neste trabalho: o
envolvimento de cidadãos que não fogem a esta luta.
Agora
que dezembro se aproxima e se assiste a uma onda sazonal de ações de
solidariedade, convém recordar que as fragilidades sociais, num país com
quase um quinto da população no limiar na pobreza, se mantêm todo o
ano. E convocam-nos a todos. Naquilo que podemos fazer e naquilo que
devemos exigir. Porque, quando o Estado falha, há uma responsabilidade
que todos temos de ser cidadãos interventivos e atuantes junto de quem
nos governa. Em vez de sermos meros romancistas de bancada.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
16/11/19
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