22/11/2019

INÊS CARDOSO

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Sem-abrigo sem ficção

Dentro de cada ser humano há um romancista pronto a emergir. O que explica a tendência que todos temos para compor histórias, preencher rapidamente os vazios em notícias ou factos só parcialmente públicos, tirar conclusões e fazer juízos definitivos.

O caso do bebé abandonado no lixo por uma sem-abrigo foi um exemplo perfeito dessa tendência, com muita gente a dividir-se entre a condenação implacável da mãe e a consideração de que o Estado falhou por não conseguir referenciar e apoiar a jovem.

O Estado é muitas vezes a figura abstrata que se usa por tudo, mas no caso concreto dos sem-abrigo vale a pena olhar com atenção para o que tem sido o papel das entidades oficiais. Em julho o Governo prometeu 131 milhões para a integração de sem-abrigo, mas quer as autarquias de Lisboa e Porto, quer as associações, receberam até agora zero. Nem a insistência permanente do Presidente da República nesta causa levou o Executivo a ser mais ativo.

Ainda assim, os dados detalhados que o JN hoje revela sobre o Porto mostram que muito mudou no último ano. A realidade é agora conhecida com detalhe, pondo a nu números muito superiores a anteriores estimativas. Aumentaram as estruturas de resposta e foram plenamente integradas 60 pessoas. Município e organizações não governamentais têm o papel principal, como seria inevitável, mas destacam outro ingrediente neste trabalho: o envolvimento de cidadãos que não fogem a esta luta.

Agora que dezembro se aproxima e se assiste a uma onda sazonal de ações de solidariedade, convém recordar que as fragilidades sociais, num país com quase um quinto da população no limiar na pobreza, se mantêm todo o ano. E convocam-nos a todos. Naquilo que podemos fazer e naquilo que devemos exigir. Porque, quando o Estado falha, há uma responsabilidade que todos temos de ser cidadãos interventivos e atuantes junto de quem nos governa. Em vez de sermos meros romancistas de bancada.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
16/11/19

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