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Contas e contos das
Pântano partidário
Regresso a um passado que não volta
Sánchez e o futuro político de Espanha
* Analista de Risco Político
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
15/11/19
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Contas e contos das
legislativas em Espanha
O centro político ficou arrasado e a ‘ultraderecha’ está em máximos, tal como o independentismo catalão. Águas difíceis de navegar, mas o passado de Sánchez prova que o líder do PSOE tem a flexibilidade necessária para sobreviver a intempéries. Resta saber a que preço e durante quanto tempo.
Em menos de 48 horas, o Partido Socialista Obreiro Espanhol (PSOE) e o
Unidas Podemos (UP), no extremo esquerdo do espectro partidário,
conseguiram o que fora impossível nos seis meses anteriores: celebrar um
acordo para a formação de governo. Após meio ano de acrimónias,
acusações mútuas, e divergências programáticas e ideológicas tidas como
insanáveis, na terça-feira os dois partidos firmaram um compromisso do
qual sairá um Executivo que Pedro Sánchez, secretário-geral socialista,
classificou de “rotundamente progressista”.
Na base do acordo está
o sentido de urgência incutido por dois factores resultantes das
eleições legislativas realizadas no último domingo. Primeiro, o
retrocesso da esquerda. O conjunto dos partidos de esquerda de âmbito
nacional passou de 165 deputados para 158. O PSOE foi o mais votado, mas
perdeu três deputados e 750 mil votos, sendo o segundo partido que mais
eleitores perdeu – apenas superado na sangria eleitoral pela hecatombe
sofrida pelo Ciudadanos (Cs), do centro-direita.
O Unidas Podemos
(UP) manteve-se a quarta força política nacional, apesar de ter perdido
sete mandatos. O Más País (MP), um partido novo que resulta em grande
medida de uma cisão no UP, obteve somente três deputados, um número
aquém das expectativas. Feitas as contas, a esquerda estava a 11
deputados da maioria absoluta e no domingo ficou a 18. A manutenção de
um bloqueio que obrigasse a novas eleições poderia agravar esta
tendência de recuo.
O segundo factor foi o crescimento impressionante do VOX. A ultraderecha
espanhola mais do que duplicou a sua presença no Congresso dos
Deputados, transformando 24 mandatos em 52, assumindo assim o lugar de
terceiro partido nacional. Estagnado nas sondagens até Outubro, o VOX
despontou nas intenções de voto na sequência das manifestações violentas
na Catalunha, conseguindo até o primeiro lugar em mais de uma centena
de localidades tradicionalmente lideradas pelo PSOE.
O separatismo
catalão foi o tema central da campanha e o VOX soube articular uma
mensagem contundente, radical e simplista para capitalizar a
insatisfação de muitos espanhóis com a permanente instabilidade catalã,
de tal forma que aproximadamente 10% dos votantes da esquerda o
consideram o partido mais capaz para resolver o ‘desafio separatista’.
Terminados os festejos, Santiago Abascal, líder do VOX, apelidou o
acordo de governo à esquerda de “Frente Popular”, uma referência clara e
directa à coligação que governou Espanha no final da II República, um
período que terminou com a eclosão de uma Guerra Civil atroz em 1936.
Em
suma, retrocesso da esquerda e ascensão da direita radical levaram PSOE
e UP a compreender que a margem de manobra era exígua, mas a urgência
do momento tem pela frente um contexto adverso.
Pântano partidário
Como
referido anteriormente, os signatários do acordo de governo não têm
mandatos suficientes para a maioria absoluta de 176 deputados.
Necessitarão por isso do apoio de uma constelação intrincada de
partidos, sendo a mais provável a que inclui MP, Partido Nacionalista
Basco, Partido Regionalista da Cantábria, Bloco Nacionalista Galego e
Teruel Existe (movimento cidadão regional). Precisarão ainda de
abstenções, nomeadamente dos independentismos catalão e basco,
respectivamente Esquerda Republicana da Catalunha e E.H. Bildu. Pequenas
flutuações neste arranjo podem inviabilizar a investidura do governo no
parlamento à primeira volta, onde se exige a maioria absoluta, e atirar
o reconhecimento do Executivo para uma segunda volta, onde bastará uma
maioria simples. O terreno é pantanoso.
À instabilidade que
sobrevém dos partidos listados e da débil geometria que deles resulta
juntam-se as divergências entre PSOE e UP. Com excepção do aumento de
alguns impostos e de reversões na lei laboral, socialistas e militantes
do Podemos mantêm discordâncias de fundo em várias matérias, desde logo
quanto às vias para normalizar as relações com – e dentro – da
Catalunha. De resto, Pedro Sánchez passou os últimos seis meses a tecer
duras críticas ao UP porque este considera os independentistas
condenados “presos políticos” e porque exige a celebração de um
referendo.
O acordo assinado não esclarece esta divergência,
embora afirme que a solução será encontrada dentro da actual
Constituição, o que sugere que Pablo Iglesias, secretário-geral do UP,
cedeu e adoptou a defesa de uma Lei Fundamental que sempre desaprovou.
Se assim for, a abstenção da Esquerda Republicana da Catalunha torna-se
praticamente impossível.
Regresso a um passado que não volta
Fora
das somas e subtracções que condicionam a estabilidade do futuro
governo, as eleições do passado domingo revelaram um tímido reforço do
bipartidarismo. A soma de PSOE com Partido Popular (PP) passou de 46%
para 49% dos votos, o que entusiasmou vários analistas. A coligação
entre os dois partidos tradicionais era possível e a melhor opção para
debelar os problemas do país, em particular os que advêm da omnipresente
Catalunha. Esta seria porventura a solução mais estável e funcional,
mas foi vítima de circunstâncias particulares: as perdas sofridas pelo
PSOE colocaram-no numa posição negocial menos favorável; o PP, que
recuperou muito do terreno perdido em eleições anteriores, temia que um
apoio aos socialistas facilitasse o trabalho ao VOX, que o ultrapassaria
pela direita.
A entrada do UP e do Cs no hemiciclo em 2015
assinou a certidão de óbito do bipartidarismo onde PSOE e PP eram
hegemónicos. Mesmo que se assista a um paulatino reforço das forças
políticas tradicionais, o sistema de partidos tem hoje uma complexidade
plural que torna inviável as maiorias do passado e que retira incentivos
à colaboração entre socialistas e populares. Nada é para
sempre, mas o regresso do bipartidarismo puro não é previsível. Contudo,
os coveiros do anterior sistema de partidos não têm razões para
festejar.
O rápido envelhecimento dos novos
Nas
suas memórias de voluntário na Guerra Civil espanhola, o
norte-americano James Neugass recorda um episódio anedótico no qual um
oficial republicano pergunta aos seus homens qual a principal vantagem
militar de Francisco Franco. A resposta correcta valeria uma promoção a
coronel ou, caso preferissem, um volume de tabaco. Após um longo
silêncio, alguém responde que a supremacia de Franco se devia ao facto
não contar com intelectuais nas suas fileiras.
Se a ausência de intelectuais em combate terá sido uma vantagem para o Caudillo,
para UP e Cs foi um problema. Estes dois partidos entraram na arena
política em 2015 com promessas de regeneração, em parte graças ao
contributo de intelectuais, académicos e profissionais, muitos dos quais
sem militância partidária ou passado político, que lhes conferiram
solidez ideológica e programática.
Tinham ideias novas e estavam livres
de vícios antigos. Contavam com a chamada ‘sociedade civil’. Embora com
premissas e roteiros muito diferentes, foram capazes de suscitar
esperança e dinamismo numa parte importante do eleitorado.
Mas
desde então UP e Cs cortaram os elos com as personalidades que os
fundaram para gradualmente se submeterem a cálculos partidários de
curto-prazo, muito dependentes de sondagens, e, sobretudo, a lideranças
ensimesmadas. Esse trajecto levou-os a bloquear a formação de um governo
durante os últimos seis meses – para júbilo de Pedro Sánchez, que
apostou sempre num regresso às urnas, convencido por algumas sondagens
favoráveis cujos resultados não se verificaram.
O facto é que UP e Cs
foram co-responsabilizados pelo impasse que obrigou os espanhóis a votar
em legislativas pela quarta vez em quatro anos.
O resultado foi
um recuo significativo no passado domingo: o UP perdeu 635 mil votos,
depois de ter perdido 1,3 milhões nas legislativas anteriores; já o Cs
viu 2,5 milhões de eleitores fugirem de uma só vez. Albert Rivera,
presidente do Cs, demitiu-se no dia seguinte às eleições e Pablo
Iglesias teve de descobrir forma de içar-se ao governo.
Ao
abandonarem as ideias e alinharem com a pauta da “velha política”, UP e
Cs perderam parte da sua identidade. Mais importante, perderam a sua
utilidade para o eleitorado.
Sánchez e o futuro político de Espanha
Consternado,
o secretário-geral socialista disse há não muito tempo que a mera ideia
de ter o UP no governo lhe tirava o sono. Afirmou igualmente que não há
razão para que seja o partido mais votado a liderar o Executivo. Mas os
tempos mudam, ainda que o tempo transcorrido seja breve, e hoje abraça
Pablo Iglesias ao mesmo tempo que é intransigente na defesa do primado
do partido com mais votos e mandatos. Sánchez é um personagem invulgar,
quando mais não seja porque foi o primeiro Presidente de Governo a
publicar as suas memórias políticas em pleno exercício de funções. E
dessa singularidade depende o futuro próximo.
São 19 os partidos
no parlamento. O centro do espectro político ficou arrasado por força da
catástrofe eleitoral que se abateu sobre o Cs. A ultraderecha
está em máximos, tal como o independentismo catalão. A formar-se, o
governo será composto por dois partidos penalizados nas urnas que
estarão dependentes de vontades várias, muitas vezes antagónicas. São
águas difíceis de navegar, mas o passado de Sánchez prova que o líder do
PSOE tem a flexibilidade necessária para sobreviver a intempéries.
Resta saber a que preço e durante quanto tempo.
* Analista de Risco Político
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
15/11/19
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