26/09/2019

MIGUEL CASTANHO

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COMO É QUE CADA PARTIDO 
TRATA A CIÊNCIA NAS SUAS 
PROPOSTAS ELEITORAIS

Os programas eleitorais fornecem pistas sobre a visão (ou falta dela) que as forças políticas têm sobre a atividade científica e o seu lugar na sociedade. O que esperar então para a investigação científica na próxima legislatura?

Todos juntos, os investigadores científicos portugueses não chegariam para preencher metade dos lugares de qualquer um dos mais conhecidos estádios de futebol nacionais. Não admira pois que, com tão pouco peso demográfico, não seja dado lugar de destaque à investigação científica nos programas eleitorais dos partidos. Para agravar, o pouco escrutínio por parte de investigadores, gestores e comunicadores de ciência não estimula a que os partidos apresentem propostas substanciais e claras sobre as medidas que pretendem tomar, seja enquanto governo, seja em iniciativas parlamentares. No entanto, os programas eleitorais fornecem pistas sobre a visão (ou falta dela) que as forças políticas têm sobre a atividade científica e o seu lugar na sociedade. O que esperar para a investigação científica na próxima legislatura? Entre os programas dos partidos com mais de 1,5% dos votos nas últimas eleições nacionais (Parlamento Europeu) encontramos diferenças importantes. Aspetos fundamentais, como a relação da Ciência com a Economia, a complementaridade com o Ensino Superior ou a independência da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) permitem, apesar de tudo, escolhas informadas entre partidos.
Numa leitura global dos programas eleitorais, começa por surpreender a total ausência de qualquer menção a investigação científica no programa do PEV. Não existe sequer menção à investigação científica nas suas áreas de eleição: a ecologia e o ambiente. O PAN vai apenas um pouco mais além: evoca a investigação científica mas com um foco quase exclusivo na experimentação animal. Mais concretamente, este partido tenciona, entre outras medidas, proibir a construção de novos biotérios, proibir o uso de financiamento público para “investigações massivas em animais” e canalizar fundos para a construção de um centro de desenvolvimento e validação de alternativas à experimentação animal. Da FCT, o PAN espera que financie um prémio de melhores práticas neste domínio e vai mais longe com as universidade, às quais tenciona “cativar uma parte do orçamento público” para o mesmo fim.
Os restantes partidos dão mais atenção à investigação científica, embora o PS apresente um programa particularmente escasso em visões globais. São prometidas simplificações administrativas e estabilidade de financiamento sem esclarecer que alterações estruturais de governação permitirão tal mudança em relação ao presente. Curiosamente, em paralelo, a atual equipa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) espera que a simplificação administrativa aconteça automaticamente por decreto (leia-se o artigo 42º da (Decreto-)Lei da Ciência, DL63/2019).
Em matéria de ligação à Economia, o programa do PS limita-se à referência a incentivos de proteção de propriedade intelectual. O CDS e o ALIANÇA não deixam dúvida sobre o papel da investigação científica como motor de um veículo conduzido pelas empresas: a Ciência deve responder a necessidades das empresas e da economia nacional. O PCP tem posição inversa: quer o reforço da investigação fundamental e que a resposta às necessidades das empresas seja garantida por uma agência de financiamento com contribuição obrigatória de algumas dessas empresas, com co-gestão e co-financiamento públicos. Neste contexto, o PCP propõe a recomposição e alargamento da rede de Laboratórios de Estado e a reafectação da sua tutela aos ministérios da sua área de intervenção. Sobre estas matérias se pronunciou também o PSD mas com posições mais moderadas em relação à ligação entre investigação fundamental e o setor empresarial, incluindo estímulos a doutoramentos em empresas. Este partido pretende ainda revisitar a missão dos Laboratórios de Estado e Laboratórios Associados, embora sem explicitar métodos ou objetivos. O ALIANÇA defende também uma revisão da organização e financiamento de Laboratórios de Estado.
O programa do PSD contempla uma visão integrada entre Ensino Superior e Ciência, cabendo dentro dessa visão as políticas de estímulo à contratação de investigadores. Neste particular, PS e PSD estão sincronizados; o PS prevê rejuvenescer as carreiras docentes do ensino superior “com recurso a investigadores que tenham tido contratos de emprego científico”.
É curiosa a presença de matérias de Ciência Aberta no programa do PSD, já que esta foi outrora uma bandeira do PS, agora ignorada. Com preocupações afins, o PAN tenciona alocar 5% do orçamento da FCT a “projetos de comunicação de trabalhos científicos” como “e-books com estudos realizados” e o LIVRE propõe “democratizar a ciência e monitorizar a literacia científica através de uma plataforma Nacional para a Literacia Científica”.
Poucos são os partidos que revelam as áreas temáticas que consideram prioritárias em matéria de investigação científica: a saúde, os ecossistemas e as alterações climáticas, no caso do LIVRE, acrescendo a estes a segurança alimentar, energia limpa, riscos sistémicos, segurança, espaço e o oceano, no caso do PSD.
Vários partidos abordam o papel e importância da FCT nos seus programas eleitorais. O CDS, BE, PCP e LIVRE preconizam alterações de funcionamento ou reestruturações deste organismo, embora sem detalhes. Já em matéria de autonomia/independência, o PCP diverge do PSD, CDS e LIVRE, com o primeiro a programar a limitação da capacidade de decisão da FCT, deslocando-a para o MCTES, e os restantes partidos a projetarem o oposto. Sendo a FCT nevrálgica para o financiamento e implementação de políticas de investigação científica, surpreende que o PS, PEV, PAN e ALIANÇA praticamente ignorem matérias como a orgânica e a relação da FCT com o poder político. Surpreende também que nenhum partido aborde o contexto atual de pulverização de mecanismos de financiamento da investigação científica e erosão da autoridade da FCT, fontes da instabilidade e imprevisibilidade em que se encontra a governação de Ciência em Portugal.
O escrutínio regular e a discussão pública de programas eleitorais por parte de investigadores, gestores e comunicadores de ciência seria um hábito saudável para a democracia e o desenvolvimento da Ciência em Portugal. Seria um sinal de maturidade ter esta comunidade mais focada nas políticas que nos governam (ou, pior, na falta delas) do que na proximidade aos corredores do poder, seja quem for que os ocupe. Só com profissionais de investigação científica empenhados em discussões públicas construtivas e esclarecedoras, sobre o papel da Ciência na sociedade e na governação, será possível que o seu peso demográfico, que não vale mais que meio estádio de futebol, se venha a traduzir numa dimensão muito superior em matéria de influência sobre os destinos da governação. Contar com a importância e o glamour da Ciência não chega. Há que arregaçar as mangas.
Professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa

IN "VISÃO"
23/09/19

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