02/09/2019

FILIPE LUÍS

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Salazar é peça de museu?

Um museu dedicado a Salazar e ao Estado Novo é uma excelente oportunidade para pôr a nu, perante as novas gerações, os métodos e as mentalidades da ditadura e, em especial, os métodos e a mentalidade do seu tacanho protagonista. Mas mesmo que seja outra coisa: pedir a sua proibição é uma atitude salazarenta.

Em 2010, tive a oportunidade de visitar, em Joanesburgo, na África do Sul, o formidável Museu do Apartheid. Leva-se um murro no estômago, logo à entrada, quando nos deparamos com os letreiros a separar whites e non-whites (brancos e não brancos). A exposição nua e crua da iconografia do racismo, as salas interativas do centro interpretativo, o apartheid narrado com contenção, objetividade, sobriedade e clareza, sem julgamentos moralistas, é um extraordinário ponto de referência para os estudiosos, escolas e público em geral. Não me consta que a fundação de um Museu do Apartheid fosse, alguma vez, contestado no país de Nelson Mandela, por, alegadamente, fazer a “apologia do racismo”...
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Ao visitar aquele espaço, pensei imediatamente nas potencialidades da ideia em Portugal, se se fizesse, entre nós, um museu e um centro interpretativo dedicado ao Estado Novo, incluindo um amplo espaço focado no estudo da figura de António de Oliveira Salazar. Um tal espaço teria de incluir, como o do apartheid, quase dispensando comentários, a iconografia do regime. Uma oportunidade para explicar a natureza da ditadura através de uma narrativa histórico-científica, despida de preconceitos ideológicos e firmada nos factos históricos. Espaços interativos, com a reprodução de uma sala de interrogatório de PIDE, por exemplo, com a presença de manequins representando as vítimas da tortura da estátua e os torturadores, com material de apoio e informação sobre as práticas da polícia política. Peças e fragmentos do Tarrafal e de outras prisões da ditadura, murais com os nomes das vítimas do regime, salas dedicadas à guerra colonial, um lápis azul usado pelos coronéis da censura, exemplos de peças vítimas desse lápis, jornais, obras literárias, peças de teatro, cinema. Os cinturões com o S (de Salazar) da Mocidade Portuguesa, mostrada em vídeos comparativos com a Juventude Hitleriana, o relato, em imagens, das consequências de tais regimes e das práticas de tais instituições. Tal espaço, teria de reproduzir as imagens de como se vivia “habitualmente”, a casa portuguesa de Amália, com pão e vinho sobre a mesa, mas sem um livro, sem um frigorífico, sem saneamento e sem uma casa de banho. O famoso livro da 3.ª classe, claro (por onde eu próprio estudei…), não mostrado sob o ponto de vista romântico e revivalista dos nossos dias, mas no ângulo de como fazia, nas suas páginas, a apologia do atraso, do conformismo, da ruralidade, do culto do chefe. (E a palmatória da sala de aula, evidentemente). Tal espaço museológico e centro interpretativo não deveria esconder as realizações do regime, as suas obras públicas, o desenho da escola primária, os filmes de época com a construção dos bairros operários, os concursos de jardins das estações de caminho de ferro, sei lá, todo um mundo de potencialidades museológicas. Por fim, indispensáveis, as botas de elástico usadas pelo ditador – e a reprodução fiel da cadeira fatal de Santo António do Estoril...
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Um museu dedicado a Salazar e à ditadura não tem de ser a apologia, mas a denúncia. Sem complexos, porém, não deve esconder as realizações, se as houve. Deve estar disponível, pedagogicamente, para as visitas de estudo de alunos do básico e do secundário, deve ser um valor acrescentado para os académicos e um espaço marcante para o público. Um murro no estômago. Como o do apartheid, em Joanesburgo.
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Mas mesmo que não fosse – ou que não seja. Mesmo que fosse, ou que venha a ser, um «museu», entre aspas, que sirva de branqueamento da ditadura e de homenagem ao ditador, mostrando apenas o folclore, os objetos pessoais, os fragmentos dos discursos, as galinhas criadas na capoeira de São Bento e ovos idênticos aos vendidos, na mercearia do bairro, pela governanta D. Maria. Que fosse o deleite dos saudosistas. Que fosse a anedota. E daí? Estaremos tão inseguros da nossa democracia que devamos temer um tal santuário de opereta? Tão enganados por nós próprios, que queiramos, agora, brandir as mesmas armas do ditador – e censurar o “Museu do Salazar”?… Com que superioridade moral enfrentaríamos, depois, os seus seguidores e saudosistas?
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É este argumento simples que não concebo que não seja entendido pelos subscritores (e alguns são inteligentes e bem preparados) da petição contra o museu. Não compreendo, em primeiro lugar, por não terem parado para pensar nas oportunidades que um tal espaço oferecerá, para pôr a nu, perante as novas gerações, os métodos e as mentalidades da ditadura e, em especial, os métodos e a mentalidade do seu tacanho protagonista. Mas o que, sobretudo, não percebo, é que caiam na armadilha da vigilância “policiesca” e no moralismo censório que sempre criticaram ao regime salazarista. É uma contradição nos próprios termos. É uma reação salazarenta.
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Esta semana, escrevo, na edição em papel da VISÃO, o seguinte:
“O que isto demonstra é que a simples evocação do nome de Salazar provoca uma imediata reação pavloviana na sociedade, num ou noutro sentido – nem sequer sabemos se os pretensos salazaristas, depois de visitarem tal espaço, não sairiam dali tão indignados como os que neste momento o contestam. Bastaria, para isso, que o espaço fizesse a censura do antigo regime e a apologia do antifascismo... Ou seja: nada prova que tal museu faça 
a propaganda do que quer que seja, ou que a faça numa direção em detrimento de outra. Hoje em dia, por exemplo, é consensual a existência de museus e de centros interpretativos dedicados à escravatura. As exposições com instrumentos de tortura da Idade Média têm grande popularidade, mas ninguém faz aquilo em casa. E o antigo campo de concentração de Auschwitz é, no fundo, um memorial mas é, também, um espaço museológico, e ninguém se lembra de o ver como um centro de apologia do Holocausto...”
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Depois, faço o trabalho de casa de saber mais sobre o projeto para Santa Comba Dão:
“E o que temos aqui? Segundo o site da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, o Centro Interpretativo estaria a cargo do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, envolvendo nomes como os dos académicos João Paulo Avelãs Nunes, que é professor auxiliar de História Contemporânea daquela universidade, e o lente de História, especialista em Estado Novo, Luís Reis Torgal. Parece ser garantia suficiente para afastar suspeitas – e devia ser mais do que suficiente para merecer o benefício da dúvida aos populistas indignados de serviço, que costumam disparar antes de perguntar.”
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Quase me apetecia concluir com um “a bem da Nação”...

IN "VISÃO"
21/08/19

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