Será que somos todos Centeno?
Análise sobre o brutal crescimento da despesa publica em Saúde
Qualquer cidadão
português tem hoje a perceção de que o Estado, com o cerco das Finanças,
tem reduzido drasticamente as despesas com a saúde. A realidade dos
números publicados no passado mês de julho pelo INE, na Conta Satélite
da Saúde, mostra exatamente o contrário: a despesa corrente em saúde
(pública e privada) acelerou em 2018, crescendo 5,1% face aos 3,6% do
ano anterior. E, curiosamente, cresceu mais na componente pública (5,3%)
do que na privada (4,6%). Do PIB, passamos a gastar em saúde 9,1%,
ocupando o top 10 dos países da UE (a 27) que mais gastam, da sua
capacidade produtiva, em saúde. A que se deveu esse crescimento?
Desde
logo, ao forte aumento da despesa pública, que saltou de 9,1 mil M€ em
2015 para 10 mil M€ em 2018 (mais mil milhões de euros que compensaram o
que o governo anterior retirou à saúde no seu ciclo de empobrecimento).
Com
o ajustamento imposto pela troika, o SNS cortou despesas com pessoal na
ordem dos 12% face a 2010, o ano desta década com valores mais
elevados. O atual governo, com a reposição de vencimentos, redução de
horários, admissão de mais profissionais, designadamente nas áreas
médica e de enfermagem, suplemento adicional para os enfermeiros
especialistas, revalorização das horas suplementares, atribuição de
descansos compensatórios para os médicos,etc., fez aumentar a despesa,
em recursos humanos, em 16,4% no acumulado desta legislatura, fazendo
com que o peso em salários e complementos diversos, atingisse o valor
relativo record de 40,6% dos gastos do SNS em 2018, superior em 2,3 p.p.
ao registado em 2010. Foram mais de 4 mil M€ , mais 600 milhões do que o
verificado em 2015. Se a este valor acrescentarmos os cerca de 200M€ de
crescimento de despesa com medicamentos de uso hospitalar, verificado
entre 2015 e 2018 (+17%), ficamos a perceber o essencial do aumento das
despesas públicas em saúde nesta legislatura. Sobrou pouco para
investimento, sobretudo para novos hospitais, nalgumas zonas do país
absolutamente necessários (Lisboa, Oeste e Évora, por ex.).
Analisemos
agora a evolução das despesas públicas face às despesas privadas. Ambas
aumentaram, como acima se referiu, mas convém salientar a maior subida
verificada na esfera pública. As despesas públicas atingiram, com a
troika, a percentagem mais baixa de sempre no contexto global das
despesas de saúde (65,6%), quando em 2002 representavam 72,6%. Isto
implicou um maior esforço das famílias no pagamento de cuidados de saúde
e um claro afastamento face à UE, em que as despesas públicas
representam cerca de 80% das despesas totais. O crescimento da procura
privada de cuidados de saúde é um claro sintoma de insatisfação com os
serviços públicos, ou por falta ou atraso de resposta ou, então, pelo
convencimento de que em privado as pessoas são melhor tratadas. Mas
estas opções estão reservadas a quem, por condição de emprego ou por
capacidade económica, tem acesso ao privado, o que resulta em manifesta
iniquidade para os mais pobres e mais afastados dos grandes centros, e
baralha o sentido das prioridades, dando a alguns acesso a cuidados
supérfluos e a outros nem aos cuidados básicos.
É,
por isso, positivo, verificarmos que com o atual governo o peso da
despesa pública inverteu a tendência de descida que vinha do
antecedente, atingindo, em 2018, o valor relativo de 66,5%. Este
crescimento, curto é certo, deve continuar, se queremos ter um Sistema
de Saúde geral, para todos e equitativo. A maior fatia da despesa
pública é com os hospitais (54%) e, em contraste, os cuidados primários
apenas representam 7,4%, sendo inclusivamente superados largamente pelas
transferências para o setor privado nas áreas dos meios complementares
de diagnóstico e terapêutica e nas consultas (12,3%). Esta aparente
inversão de prioridades, em que o próprio SNS privilegia o privado, em
prejuízo de um setor estratégico como são os cuidados de saúde
primários, mostra bem o peso da tradição portuguesa, em que o Estado,
através das convenções, aliena uma boa parte do orçamento do SNS, em vez
de investir nos seus próprios serviços.
Com
se vê, nem sempre o aumento de despesa pública é virtuoso. Importa, por
exemplo, perceber que a reposição de rendimentos e de regalias aos
profissionais de saúde, ainda que legítima, não traduz valor
acrescentado para os doentes. Do mesmo modo, a admissão de mais
profissionais exige uma medida consequente de avaliação dos benefícios
para os cidadãos, o que não tem acontecido e cria embaraços às
administrações, quando prestam contas.
O
crescimento das despesas públicas deve ser orientado pelo planeamento
das necessidades dos cidadãos, pelo reforço dos investimentos na
prevenção primária e secundária e pela correção das assimetrias
regionais em bens de equipamento e recursos humanos. Privilegiando a
prestação pública e não reproduzindo indefinidamente as transferências
de verbas para os prestadores privados, em consultas, exames e
cirurgias. E não cedendo a reivindicações corporativas permanentes e
exorbitantes, que não deixam grande margem para melhorar a organização
dos serviços, a modernização da gestão e dos sistemas de informação ou o
conforto e bem-estar dos doentes. A defesa do SNS e dos doentes não se
mimetiza com o aumento de despesa sugerido pelos grupos de interesses e
pelas principais corporações. As políticas públicas exigem mais
racionalidade e independência.
*Professor da Escola Nacional de Saúde Pública
IN "VISÃO"
19/08/19
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