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* Advogado
IN "JORNAL DO NEGÓCIOS"
06/08/19
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Seria absurda
uma interpretação literal
dos princípios do PS
Na polémica destes dias sobre as incompatibilidades entre o poder político e os interesses privados, o mais interessante não são os casos concretos que vieram à baila, mas a forma como o PS tentou dominar a discussão.
Foi tudo muito instrutivo sobre a facilidade com que os políticos em
Portugal acham que conseguem lavar a sua própria consciência - e, de
caminho, o cérebro do eleitorado.
Quando
a discussão começou, a propósito dos contratos da empresa do filho do
Secretário de Estado da Protecção Civil com o Estado, a reacção
instintiva foi a de dizer que a lei não obrigava à demissão do
governante, o que qualquer pessoa que soubesse ler percebia que era
mentira. Foi por isso que depois António Costa quis chutar a polémica
para canto, inventando umas "dúvidas" de interpretação que pediu à PGR
que esclarecesse.
A prova de que o PS não acredita na existência dessas dúvidas é que,
ao mesmo tempo, utilizou uma linha de defesa contraditória: a de que
afinal a lei é absurda e, levada às últimas consequências literais, tem
aplicações injustas. Nas palavras do ministro Santos Silva, "seria
absurda uma interpretação literal da lei". É por estas e por outras,
acrescentaram exasperados muitos socialistas, que deixou de ser possível
recrutar os melhores para a política.
Sobre isto, é
preciso lembrar algumas coisas. A primeira é que a polémica tem a sua
pré-história num ajuste directo (o das célebres golas inflamáveis)
decidido no gabinete do Secretário de Estado por um adjunto em cujo
currículo nada havia que o recomendasse para tais funções, a não ser as
provas dadas enquanto jovem com uma carreira promissora de eterno boy do
PS. Que legitimidade têm os socialistas para se queixarem de que "os
bons" não querem ir para a política? Nenhuma.
Depois, é
bom recordar que este tipo de leis sobre impedimentos e
incompatibilidades, por natureza, pode gerar situações concretas de
aparente injustiça. Não pode deixar de ser assim. Estas leis servem para
prevenir riscos abstractos, em nome da salvaguarda do interesse público
da confiança na imparcialidade da actuação do Estado. E por isso, sim,
elas têm de ser interpretadas literalmente e não podem estar dependentes
de em concreto haver realmente situações de promiscuidade indesejável. O
que lhes é pedido não é que resolvam problemas a posteriori; é que
evitem dúvidas a priori.
Por exemplo: se os juízes
pudessem acumular as suas funções com outros interesses económicos e
profissionais, significaria isso que os juízes orientariam
necessariamente a sua magistratura para a defesa desses interesses
particulares? Não. Mas poderia um Estado de Direito suportar essa
dúvida? Também não.
Por fim, é curioso notar a evolução do
"pensamento" do PS nesta matéria. Até agora, sempre que um socialista
pátrio se via discutido por razões éticas, o mantra era aquele que Pina
Moura tornou célebre: "a ética republicana é a lei". Ou seja, se da
letra da lei não resulta que determinada conduta é proibida, então é
porque ela é moralmente irrepreensível.
Sempre achei
estranha esta adesão dos nossos socialistas ao positivismo jurídico de
Oitocentos, porque a defesa de que as leis têm uma perfeição moral
intrínseca - de que são o corolário lógico de um raciocínio imbatível
sobre a realidade que visam regular - é mais coisa do liberalismo
capitalista. Os negócios privados precisam de segurança e
previsibilidade e, portanto, o que os liberais clássicos exigiam ao
Estado ou a qualquer outro soberano é que respeitassem escrupulosamente a
letra da lei, sem ceder à tentação das interpretações criativas e
arbitrárias.
Seja como for, aquela era a doutrina do PS.
Acontece que agora há uma lei que, lida literalmente, é um empecilho
para a defesa ética de um socialista. O que, como diria Kant, é chato.
Por isso o PS mudou de imperativo categórico: em vez da equiparação
rigorosa entre lei e ética, temos o diametralmente oposto "seria absurda
uma interpretação literal da lei".
Nada contra. As leis
têm de estar sujeitas a crítica e ao nosso permanente cepticismo. Mas o
que estes dias mostraram é que há outra coisa que "seria um absurdo"
levarmos à letra: as declarações do PS sobre quais são e quanto valem os
seus princípios éticos.
* Advogado
IN "JORNAL DO NEGÓCIOS"
06/08/19
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