24/07/2019

MIA COUTO

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A borboleta

Não sei se reparou, Marlene, que tratamos de Recursos Humanos. E sempre de olhos baixos, ironizou: Humanos, está a perceber? Borboletas, não são da nossa competência. E mandou que se pulverizasse a sala com um inseticida. Desses inodoros, acrescentou. Em pânico, Marlene fingiu acatar a ordem

No escritório da multinacional, num décimo quinto andar da capital, surgiu uma borboleta. Estava pousada no microfone da sala de reuniões. A secretária Marlene aproximou-se com infinita cautela, sentou-se numa das cadeiras da sala vazia e permaneceu imóvel durante longos minutos. Olhou em contraluz para as asas coloridas e achou que estava em presença de uma mensageira. Usou o seu telefone, fotografou o inseto, editou a imagem para realçar as cores e enviou-a para umas tantas amigas. 

Procurou no Google o oculto sentido daquela aparição. Uma página da net fornecia uma longa lista dos significados espirituais das borboletas. Renovação, recomeço e anunciação eram os mais comuns. Uma outra página era mais apelativa: Você sabia que os Anjos se comunicam frequentemente connosco através das borboletas? Marlene filmou o eventual anjo que permanecia hirto no poleiro metálico. Procurou outra página e então, sim, encontrou algo que a deixou tão paralisada quanto a borboleta. Aquela criatura trazia o mais esperado dos recados: o da fertilidade. Há anos que Marlene esperava engravidar. E ali estava, na mais delicada criatura, o anúncio da boa nova há tantos anos esperado. Mais entusiasmada que Marlene apenas a Virgem Maria ante o Arcanjo Gabriel.

Por fim, a secretária fez o que dela profissionalmente se esperava: comunicou a aparição ao seu superior, o Diretor de Recursos Humanos. O marido de Marlene, o Osório, há meses desempregado, irrita-se sempre que ela lhe fala do seu local de trabalho. Recursos Humanos?, pergunta o marido. Prefiro o desemprego a ser tratado como “recurso”. Osório reage assim por despeito, pensa Marlene. Lá em casa ela era a chefe de família. E a raiva do marido cresce: um homem não foi feito para esperar pela mulher. E um casal não foi feito para desesperar por um filho.

O diretor não levantou os olhos do computador. E assim manteve Marlene na habitual invisibilidade. Não sei se reparou, Marlene, que tratamos de Recursos Humanos. E sempre de olhos baixos, ironizou: Humanos, está a perceber? Borboletas não são da nossa competência. E mandou que se pulverizasse a sala com um inseticida. Desses inodoros, acrescentou. Em pânico, Marlene fingiu acatar a ordem. E já fechava a porta quando o diretor se ergueu, atacado por súbita preocupação.

– Onde é que está a mariposa?

– É uma borboleta. Está na sala de reuniões.

Marlene acompanhou a acelerada marcha do chefe ao longo do corredor. As borboletas fecham as asas por cima do corpo, foi explicando enquanto caminhava. As mariposas deixam-nas ao lado do corpo, como um avião.

O diretor irrompeu ruidosamente pela sala de reuniões e espreitou de longe a impávida borboleta. Rodou pela mesa, tirou fotografias de diversos ângulos. Ligou-se à internet e procurou: “Doenças provocadas por borboletas”.

Em poucos segundos, sentenciou:
– Chame imediatamente a responsável do DHS.

– Quem?

– O Departamento de Health and Safety!!!

Marlene sabia: naquela empresa, em momentos decisivos, as pessoas eram designadas em inglês. Como se, em português, valessem menos.

– Vá chamá-la, agora.

Mesmo em português, a ordem era sumária e perentória. Suspeitando da gravidade do que se seguiria, Marlene ainda ousou contestar.

– O que passa, doutor? É uma simples borboleta.

– Pousada no microfone onde as pessoas falam?

Marlene foi para o seu gabinete e ligou para o DHS. Depois, reabriu a página que antes consultava no computador. Procurou “Os mais belos versos sobre borboletas”. E abriu um poema chamado “Jardim”. E leu em voz baixa:

Se eu tivesse jardim
seria para semear borboletas.

Limpou uma imaginária lágrima, ajustou o vestido ao ventre que já adivinhava em redondez lunar. De volta à sala de reuniões, encontrou a responsável de Saúde e Segurança, recebendo instruções do diretor de Recursos Humanos.

– Ouviu falar da epidermólise bolhosa, também chamada doença da borboleta?

– Nunca ouvi falar disso.

– Fica-se com a pele tão frágil como as asas de borboleta.

– Gostava de ter asas de borboleta. Amarelas como essa que aí está pousada.

– Não brinque com coisas sérias, doutora. Com essa doença, as pessoas deixam de poder usar sapatos, só podem usar roupas especiais. A pele rompe-se ao menor atrito. Morre-se antes dos trinta.

– Que horror!

– Proceda a uma avaliação de riscos. Consulte o procedimento A-34.

– Mas, diretor, a tal doença... tem a certeza de que é transmitida por borboletas?

– Foi o que vi no Google. É sua função confirmar isso, doutora.

Marlene entrou na sala acompanhada por uma empregada de limpeza. O que vão fazer, perguntou o diretor. Vamos abrir a janela e enxotá-la, respondeu a empregada de limpeza. Nada disso, argumentou o diretor. Vá é buscar o aspirador, e fazemo-la desaparecer enquanto o diabo esfrega um olho.

Marlene levou as mãos ao peito angustiada em imaginar o seu Arcanjo Gabriel a desaparecer no ventre escuro de um aspirador. Deu um safanão no microfone e a borboleta ergueu voo em direção às paredes de vidro da sala. Marlene entreabriu a janela envidraçada para que o bicho pudesse escapar. 

Mas a borboleta deu meia-volta e voou na direção oposta. Pousou num quadro na parede do lado oposto. O quadro chamava-se “O céu”. Havia naquela tela uma nesga de azul sobre prédios, antenas e fumos. Mas era um azul vindo de dentro, uma cor que apenas o pintor sabia existir. A borboleta tinha escolhido o seu pouso definitivo. O céu que restava lá fora era demasiado escasso para voar. E demasiado sujo para morrer.

Nesse final de tarde, Marlene regressou a casa sem peso, como se não houvesse chão. E caminhou como se tivesse asas. Talvez fosse a tempo de surpreender Osório acordado. Talvez o marido descobrisse nela o mesmo céu que a borboleta encontrara na tela.

IN "VISÃO"
19/07/19

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