01/07/2019

MARTA CAIRES

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30 de Junho

Não é uma data importante, não me lembro de factos marcantes a não ser o fim das aulas, daquele alívio, do fim do despertador a tocar logo de manhã e do autocarro cheio. O último dia de aulas acabava cedo, quase sempre com uma festa da 100ª lição e os singles da moda a tocar um gira-discos portátil. E todos estavámos com a cabeça nas férias, eufóricos, não havia a gorda, o caixa-de-óculos, o galã e a miúda gira, mas um punhado de miúdos a abanar-se ao som da música pop do anos 80.
Íamos todos ter saudades, mas só lá mais para o fim de Agosto, quando chegava o tédio da praia e de dormir até tarde. As festas do fim das aulas, depois de termos despachado os pontos todos (os pontos eram os testes, mas ninguém dizia testes ou fazia testes, nós tínhamos pontos), estavam envoltas em alguma nostalgia, quase sempre havia uns namoricos, daqueles à moda antiga. Ele muito vermelho e ela também, os dois a conversar baixinho ou dos outros, em que ele se fazia de engraçadinho e ela de difícil.
A menos que fossem vizinhos porta com porta, nenhum daqueles “flirts” sobreviveria às férias. Nós íamos para as nossas casas, viver as nossas vidas e isso era quase como viajar para outro país. Ou pelo menos eu tinha essa impressão, quando subia para o autocarro e deixava para trás a cidade, as aulas, aquele ambiente onde, a cada ano lectivo, aprendia muito mais do que a matéria. Nos intervalos, ouvia tudo o que diziam as outras sobre o que se devia ler, a música que valia a pena, os filmes obrigatórios e todos os palpites de roupa e sapatos.
Quando a porta da escola fechava, nada nos mantinha ligados, nem mesmo os telefones que, nos anos 80, dormiam silenciosos nos corredores das casas, em cima de uma mesa comprada de propósito e com lugar para a lista telefónica e uma agenda bonita. Eu ainda partilhei o meu número com algumas pessoas, mas além das amigas mais próximas, ninguém achou graça a ter conhecimentos no Laranjal. Não era um lugar muito cotado e eu dava muitas negas, não podia ir a matinés na discoteca ou a festas de anos. A minha mãe não permitia voos para lá do Lido, do cinema da sessão das quatro e meia e dos encontros de jovens da paróquia.
E o fim do ano lectivo tinha assim um sabor a fim de festa, a última oportunidade para dizer ou fazer saber, para perceber que aquele tolo, com ares de engraçadinho, que troçou dos sapatos, da roupa, do cabelo e trocou bilhetinhos com meia turma, afinal tinha uma paixoneta pela miúda a quem nunca ligou. Até os tímidos se revelavam, quase sempre mais corajosos que todos os outros, quando davam as mãos e dançavam slows alheados das piadas e risadinhas. E lembro-me de como nunca me parecia real quando dava por mim no centro de uma dessas histórias, sem perceber de que maneira um rapaz podia perder mais de dois segundos a olhar para mim.
A parte boa – que era também a parte má – era a certeza que tinha três meses de férias e que a comida era boa. Havia sempre bolos e pudins nas festas, feitos pelas professoras e pelas alunas mais prendadas, das que trocavam receitas e falavam da cozinha com à vontade de especialistas. Sei que foi num desses convívios, com música a tocar e pares a cochichar, que percebi que se podia fazer mousse de pitanga e que era boa, de repetir e repetir e só parar por vergonha. Nessa altura já eu tinha percebido que a escola era mais do que a matéria. Na escola contavam os intervalos, as vezes que tínhamos feriado, o caminho que se fazia até à paragem do autocarro, as paixões escondidas, os comentários maldosos e aquelas festas, que tiravam tudo a limpo e nos mandavam para as férias grandes sem pesos na alma.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
30/06/19

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