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IN "VISÃO"
12/06/19
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A Teologia mata?
A pergunta parecerá eventualmente exagerada mas não deixa de ser pertinente. O que mais não falta por esse desvairado mundo é quem ande a matar o próximo em nome da sua crença religiosa
Ainda há poucos dias uma discussão entre dois pastores em Timbaúba,
Pernambuco, Brasil, sobre questões teológicas e interpretações bíblicas
terminou com a morte de um deles. O indivíduo que assassinou o colega à
facada foi preso em flagrante e levado para a delegacia local. A
discussão terá acontecido nas traseiras do templo onde ambos serviam. O
homicida ainda tentou esconder-se numa residência mas foi capturado e
confessou o crime. A vítima, depois de ser esfaqueada, tentou fugir mas o
agressor atingiu-o com uma pedra.
Também em Setembro de
2016, um debate teológico informal entre dois pastores americanos
terminou com o homicídio de um deles, depois de a discussão descambar
para a intolerância e a violência. Discutiam no pátio de um lar de
idosos nos subúrbios de Chicago, Illinois (EUA), a respeito de questões
ligadas à Bíblia e à espiritualidade, como era hábito, quando um deles
puxou a arma e deu dois tiros na cabeça do outro, que teve morte
imediata, acto que foi registado por uma câmara de videovigilância. O
assassino prestava assistência espiritual naquele centro de
solidariedade.
Sim, matam-se pessoas devido a disputas religiosas
e teológicas, tal como se matam pessoas em disputas desportivas,
políticas, familiares ou sociais. E ninguém em seu perfeito juízo propõe
acabar com as famílias, a vida pública, a cidadania ou o desporto por
causa disso. A questão não está nas diferenças político-partidárias,
clubísticas, familiares ou religiosas, que sempre existiram, existirão e
é saudável que existam, mas sim na atitude de respeito pelo outro e
aceitação da diferença de opiniões e sensibilidade de cada um.
É
claro que há contextos nos quais se torna mais chocante tal manifestação
de intolerância e violência, como a religião ou a família. É suposto
que o âmbito familiar constitua um espaço de paz e protecção mútua, mas é
onde surgem frequentemente índices de violência relevantes – a chamada
violência doméstica – e a maior taxa de abuso sexual infantil como os
estudos sobre pedofilia demonstram.
Assim como é suposto que o
território relacional de uma mesma comunidade religiosa, enquanto
família espiritual, se revista de segurança, crescimento pessoal, paz e
edificação mútua. Mas também é aí que pode surgir o abuso religioso de
carácter espiritual, psicológico e por vezes até físico. Os cínicos
dirão que a religião faz mal às pessoas. Mas dirão o mesmo da família?
Ou da vida associativa? Ou da participação política? A solução será
acabar com tudo quanto sejam comunidades religiosas, famílias, clubes,
associações, colectividades e partidos políticos? E resta o quê?
Como
é bom de ver, existem e existirão sempre problemas onde coexistirem
pessoas. São as pessoas que criam os problemas e não as organizações.
Estas podem, no limite, não os prevenir ou até potenciar, mas não os
criam. Um pedófilo não o é por causa da sua família, mas apesar dela. Um
corrupto não o é por causa da instituição onde trabalha, mas apesar
dela. Os criminosos são sempre as pessoas e não as organizações. Culpar
as organizações é uma forma de diluir e branquear as responsabilidades
individuais.
Fala-se muito de violência inter-religiosa (entre
diferentes expressões religiosas) mas pouco de violência intrarreligiosa
(dentro da mesma religião), que não é menos evidente e preocupante.
Sim, a Teologia pode matar, como qualquer outra coisa. Basta
lembrarmo-nos dos horrores perpetrados pelos talibãs do Afeganistão
(estudantes de teologia islâmica). Como sempre, é a pulsão do poder que
está por detrás da violência em qualquer destes âmbitos sociais, nem que
seja o poder de ter razão.
Os casos acima citados revelam pelo
menos duas coisas: fanatismo religioso, com a correspondente
incapacidade de tentar escutar, compreender e respeitar o ponto de vista
alheio; falta de preparação pastoral ou deslealdade para com a vocação
de ministro do Evangelho; e sobretudo a pulsão de Caim que o levou a
assassinar o irmão: “E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu
irmão clama a mim desde a terra” (Génesis 4:10).
Ludwig Feuerbach
dizia que “Quando a moral se baseia na teologia, quando o direito
depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem
ser justificadas e impostas”. Os triunfalismos religiosos, tal como os
modelos absolutistas de governo, devem ser arrumados na prateleira da
História. A Modernidade veio trazer empoderamento aos indivíduos,
libertando-os de soberanias abusivas ou ilegítimas. Mas agora os
indivíduos não podem, por sua vez, comportar-se socialmente como se
fossem soberanos sobre os outros, que são mais fracos ou que pensam e
sentem diferente, pois sempre que assim fizerem revelam-se indignos da
sua própria liberdade.
* Doutorado em Psicologia e Especialista em Ciência das Religiões; Diretor do Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona; Coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; Investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias – Universidade de Lisboa) e do CIPES (Centro de Investigação em Política, Economia e Sociedade – Universidade Lusófona). Desenvolve há muitos anos intensa atividade em instituições culturais, humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou.
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12/06/19
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