radical e livre
A maior parte dos meus grandes amigos – os vivos e os mortos – são ou
foram meus correligionários de ideias e companheiros de combates. O
Ruben de Carvalho, militante de sempre do PCP, membro do Comité Central
do Partido, preso várias vezes antes do 25 de Abril, não pertencia,
claramente, a essa maioria. Mas era um amigo muito especial.
Embora
acompanhasse há cerca de três semanas o seu estado de saúde – um
traumatismo que num país normal e civilizado não teria nunca acontecido e
que o deixou em coma –, foi para mim um grande choque quando soube esta
manhã da sua morte.
Fazia com ele, desde 2015, os Radicais
Livres, na Antena 1. E, ao longo destes anos, em que jantámos muitas
vezes e passámos muitas horas juntos, o que recordo dele é precisamente
essa radicalidade livre, um dom sempre raro mas mais raro ainda em quem,
como ele, tinha uma fidelidade partidária; e uma fidelidade séria, das
antigas, uma fidelidade pela qual se sacrificara e se sacrificava.
Como
todos os homens grandes, generosos e conscientes do mundo e da
História, falava dos seus tempos de prisão e de isolamento na prisão com
sobriedade, com humildade, sem teatralidades, sem entrar naquele martirológio dos que não passaram por nada e se entretêm a inventar passados e perfis úteis.
Quando o Ruben aceitou entrar num programa em que dois “radicais” – um comunista e um nacionalista (ou “fascista”, como os antifascistas gostam de dizer) – iriam discutir ideias, factos, efemérides históricas e falar de livros, filmes e de tudo um pouco, não resisti a perguntar-lhe:
–
E a sua Filarmónica deixa-o? (“Filarmónica” era o nome gracioso,
afectuoso e certeiro com que o melómano Ruben de Carvalho se referia em
privado ao Partido Comunista.)
– Eu já sou muito velho e também sou muito velho na minha Filarmónica –, respondeu-me.
Que
é como quem diz, sou livre, comprometido, convicto mas livre. E era.
Sem nunca deixar de ser leal. Eu, que não tenho Filarmónica, admirava o
equilíbrio que conseguia. E quando as coisas se encaminhavam para a
escalada, um de nós deixava cair uma piada, riamos e mudávamos de
assunto.
Começámos o programa em Outubro de 2015 com o Luís Marinho e a partir do Verão de 2016 estivemos com o Rui Pego, que nunca tentaram “moderar” a nossa “radicalidade” (só, ocasionalmente, a nossa errância).
Por decisão de princípio, não falávamos de política
partidária, conscientes de que havia gente a mais a falar disso e a
zangar-se por causa disso. Fora disso, falávamos de tudo – de
“quadradinhos”, guerras, comunismo, fascismo, de Lenine, de Mussolini,
do passado português e, claro, do Estado Novo (a que ele chamava
“fascismo” e eu “nacionalismo autoritário”).
Contrapor
“nacionalismo autoritário” a “fascismo” era já uma graça que
partilhávamos, por isso, quando, este ano, fizemos um programa dedicado
aos 100 anos da fundação dos fasci de combatimento (já tínhamos feito um
sobre os 100 anos da Revolução de Outubro), comecei logo por dizer que
íamos falar dos “100 anos do nacionalismo autoritário de Mussolini”.
Vou
ter muitas saudades dos risos, das conversas, das gravações, da
liberdade com que passeávamos pela História e pelas histórias e com que
discutíamos tanta coisa. Sobretudo vou ter saudades das suas chamadas
telefónicas a perguntar-me como ia a “conspiração da direita” e de
alguns jantares em que falávamos de batalhas em que tínhamos estado
juntos mas em lados opostos.
Como sempre, nas grandes amizades, como nas grandes paixões, ficam coisas – e importantes – por dizer.
Tenho esperança que o Maestro da minha Filarmónica lhe tenha já distribuído a partitura.
IN "EXPRESSO"
11/06/19
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