03/06/2019

FERNANDA CÂNCIO

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Em louvor de Manuel Morais

A primeira vez que ouvi falar de Manuel Morais foi há um ano, quando foi entrevistado para o DN por Valentina Marcelino. Licenciado em Antropologia, Morais tinha concluído uma tese de mestrado sobre policiamento em "zonas urbanas sensíveis" - a expressão usada nas polícias para designar aqueles que são considerados "bairros problemáticos".

O título da entrevista era «Há polícias racistas e xenófobos e as organizações nada fazem». Nela, Morais afirmava: "Há elementos das várias forças de segurança que exteriorizam as suas ideias racistas e xenófobas, usam tatuagens e simbologias neonazis, pertencem a grupos assumidamente racistas. Isto é do conhecimento de todos e, infelizmente, as organizações nada fazem para expurgar estes "tumores" do seio das forças de segurança. Pergunte-se à Inspecção Geral da Administração Interna, à PSP, à GNR, à Guarda Prisional ou a qualquer outra força: o que fazem quando são detectadas estas situações? Nada, não fazem nada."

Que um polícia tenha a coragem de afirmar isto é notável. Sendo membro da direcção do principal sindicato da PSP, a ASPP (a Associação Sindical dos Profissionais de Polícia), ainda mais digno de admiração se torna.

Logo na altura houve filiados na ASPP a exigir à direcção que abjurasse Morais. Mas a tempestade passou. Agora, o sindicalista voltou, numa reportagem da SIC, a falar do racismo nas forças de segurança. Disse coisas óbvias e sensatas: que há preconceito racial na sociedade portuguesa e, portanto, também na polícia; que todos temos obrigação de o reconhecer e desconstruir.

A exibição da reportagem, sobre casos de violência policial contra negros, ocorreu logo após a condenação de oito agentes da PSP por agressões, sequestro, insultos, acusações falsas e falsificação de autos de notícia num processo em que as vítimas foram habitantes negros da Cova da Moura. Em reacção, surgiu uma petição cujo autor, um destemido anónimo, se afirmava membro da ASPP e ameaçava desfiliar-se caso Manuel Morais não saísse da direcção do sindicato, apelando a outros que fizessem o mesmo.

A petição não tinha juntado mais de 200 assinaturas quando, na manhã de segunda-feira, Morais se demitiu. Explicou na SIC Notícias, a seguir, que o fez para não prejudicar o seu sindicato.

Conheci o fundador da ASPP, José Carreira. Foi alvo de inúmeros processos disciplinares e ameaçado de expulsão da PSP por lutar para que os polícias pudessem sindicalizar-se. Morreu em 2003, aos 48 anos, um ano após a lei sindical da PSP ser aprovada. Era um homem bom, íntegro e corajoso. A sua defesa do sindicalismo integrava-se na defesa dos direitos fundamentais; queria uma PSP democrática e civilizada, que não dividisse o mundo entre os polícias e os outros e onde os abusos de poder não fossem calados, consentidos ou até estimulados.

Ao ver Manuel Morais na SIC, comovido, a garantir que não se arrepende de nada do que disse e que vai continuar a lutar por aquilo em que acredita, lembrei-me de José Carreira. E das palavras de Morais ao DN sobre o que as polícias - e tantos polícias - fazem quando detectam racistas e xenófobos no seu seio: nada. O contrário, ficámos a saber, do que acontece aos polícias que denunciam e combatem o racismo.

IN "TSF"
29/05/19

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