Eu
não sou daqueles que acham que os antigos Presidentes da República
devam estar condenados a vaguear como múmias pelo espaço público, muito
recatados e em prudente silêncio, para não se salpicarem com a espuma
dos dias, nem perturbarem a paz da pátria. Acho óptimo que falem quando
lhes apetece, e Cavaco nem sequer tem falado mal: esteve bem quando protestou contra a não-recondução de Joana Marques Vidal à frente da Procuradoria-Geral da República; e esteve novamente bem na intervenção que fez
esta semana, lembrando duas coisas: 1) que o dinheiro que o Estado
perdeu com a descida do IVA na restauração e com o regresso às 35 horas
foi dinheiro que depois lhe faltou para investir no Sistema Nacional de
Saúde; 2) que a grande questão que deveria dominar o debate público em
Portugal, e preocupar genuinamente a classe política, é esta: por que
razão o país “está a cair para a lanterna vermelha” da Europa,
mostrando-se incapaz de alcançar os níveis de crescimento de outros
países intervencionados pela troika.
Tudo
isto está certíssimo, e o país (a parte lúcida, pelo menos)
agradece-lhe que seja lembrado. Só que depois há invariavelmente um
momento infeliz, em que Cavaco dá um passo maior do que a perna – e está
quase sempre relacionado com o puxar dos galões do passado, e com
aquela mania absurda de alimentar a soberba do homem impoluto, em
relação ao qual é preciso nascer duas vezes para alcançar tamanha
honestidade. Isso já lhe correu mal várias vezes, mas Cavaco insiste, e por isso disse, a propósito do Familygate:
“Fui verificar a composição dos meus três governos durante os dez anos
em que fui primeiro-ministro e não detectei lá – espero não me ter
enganado – nenhuma ligação familiar.”
Que
ele se enganou já toda a gente sabia, mas a dimensão do engano foi
crescendo à medida que os jornais foram investigando o passado dos
governos de Cavaco. Após o trabalho do site Polígrafo, parece que estacionámos (até ver) nos 15 familiares. Nem sequer faltou a recuperação de uma capa antiga do semanário O Independente, com o título “A mulher do próximo”, onde se podia ler,
em Fevereiro de 1992: “Discretamente, sem ninguém ver, eles decidiram
usar o governo para dar emprego às respectivas senhoras. A mulher de
Fernando Nogueira foi parar ao Ministério da Saúde.
A de Dias Loureiro
está na Cultura. Sofia Marques Mendes deu entrada na Agricultura. A
senhora de Arlindo Cunha trabalha com Couto dos Santos. E a lista não
acaba mais! É a história completa de como não há família que se perca
neste governo.” O amor à família, como se vê, é antigo, e transversal
aos partidos.
Assim
sendo, temos que juntar à falta de vergonha dos socialistas a
hipocrisia dos sociais-democratas, entre os quais Luís Marques Mendes,
que anda na SIC a falar excelentemente destes temas, e que
ainda há pouco tentou ser muito transparente ao abordar a situação da
sua irmã e do seu pai, mas que, por azar, se esqueceu de referir a sua
mulher – e custa a acreditar que não se recordasse da sua nomeação nos
anos 90. Portanto, estou com Marcelo, que finalmente entendeu que há aqui um problema:
“Quando a ética não chega, é preciso mudar a lei”. E se até o próprio
António Costa (que também entendeu que há aqui um problema – iupi!)
pediu isso mesmo no Parlamento, ao menos que se aproveite esta triste
confusão para extrair daqui alguma coisa de útil para o país. É arranjar
uma lei séria e bem feita, e acabar com o regabofe doméstico de uma vez
por todas.
Jornalista
IN "PÚBLICO"
06/04/19
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