sobrelotado de imbecis
Os imbecis enchem o mundo e são perigosos. Como a História, sobretudo a do séc. XX, insiste em recordar. Todavia, esta é uma sociedade em que a memória se esfuma num ápice e o prazer narcísico se insinua nos ecrãs dos televisores e dos smartphones
Estudada nos livros e vista de dentro e de fora, como tenho podido
vê-la, é uma evidência que a política implica, desde tempos imemoriais,
elevadas doses de cinismo e hipocrisia. Mas também implica, pelo menos
em democracia, limitações para além das quais ela se degrada
irremediavelmente. Bem mais problemática é, todavia, a proliferação de
imbecis na política, que logram tomar conta dela e conquistar o poder,
atingindo extremos nunca imaginados pelos mais desatentos. Os políticos
cínicos e hipócritas são, regra geral, tipos inteligentes, embora por
vezes sem escrúpulos. Já os políticos imbecis são isso mesmo: imbecis. E
é sobre eles que tenciono escrever a seguir.
“A cólera dos imbecis enche o mundo.” Quem escreveu repetidamente
esta frase, como se ela fosse um refrão, foi um grande escritor francês –
George Bernanos (1888-1948) – num admirável documento humano escrito e
publicado em 1938, intitulado “Os grandes cemitérios sob a Lua”, sobre o
episódio histórico considerado um trágico preâmbulo da ii Guerra
Mundial: a Guerra Civil de Espanha (1936-1939).
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George Bernanos era tido como um homem de direita, conservador e
católico. Nem por isso deixou de ser um dos primeiros intelectuais a
denunciarem as atrocidades cometidas durante essa guerra civil
desencadeada por cinco generais fascistas, com a bênção dos bispos da
Igreja espanhola, católica apostólica romana, que a consideravam como
uma “cruzada”. Entre esses cinco generais depressa emergiria Francisco
Franco, dado que os outros quatro imbecis – Sanjurjo, Mola, Fanjul e
Goded – morreram prematuramente, os dois últimos fuzilados por alta
traição e os dois primeiros vítimas de acidentes aéreos, um deles
ocorrido por cá, em Cascais, na Quinta da Marinha.
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Abro aqui um parêntesis para aludir à personalidade de George
Bernanos, perfeitamente enquadrável na excelente definição da
personalidade da escritora Agustina Bessa-Luís, dada pela sua biógrafa
Isabel Rio Novo numa curta entrevista ao “Expresso” feita por Inês Maria
Meneses. Tal como Bernanos, Agustina ter-se-á regido sobretudo por
convicções, e não por ideologias. Como disse a sua biógrafa: “Escapou
sempre a qualquer tentativa de aprisionamento ideológico e pautou-se por
uma grande independência ética e estética. Em tudo a descobri
desalinhada.” O mesmo se diga de Bernanos.
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Referindo-se genericamente à cólera dos imbecis que enche o mundo,
George Bernanos avisava os católicos: “O vosso erro profundo consiste em
acreditar que a estupidez é inofensiva, que há pelo menos formas
inofensivas de estupidez.” Todavia: “A estupidez não terá mais força
viva do que uma caronada de 36 (peça curta de artilharia naval) mas, uma
vez em movimento, arrasa tudo.” E acrescentava: “Nenhum de vós ignora
do que é capaz o ódio paciente e vigilante dos medíocres e, contudo,
lançais a sua semente aos quatro ventos!” Realçando também a “monstruosa
capacidade de embrutecimento” da estupidez, Bernanos recordava:
“Napoleão vangloriava-se, em Santa Helena, de ter tirado proveito dos
imbecis. Mas foram os imbecis que acabaram por tirar proveito de
Napoleão. Não só, como poderíeis julgar, por se terem tornado
bonapartistas. Mas também porque a religião do Grande Homem, adaptada ao
gosto das democracias, originou um patriotismo néscio que ainda age
poderosamente sobre as suas glândulas, e que os antepassados jamais
conheceram.” Esse “patriotismo néscio” caracterizava-se, segundo
Bernanos, por uma “cordial insolência, com índole de ódio, dúvida e
inveja”.
“Foi uma imprudência louca ter desenraizado os imbecis”, lamentava o
escritor. A seu ver, “o imbecil é, antes do mais, um ser de hábitos e
ideias preconcebidas”. Entretanto: “A vida moderna não se limita a
transportar imbecis dum lado para o outro. Mistura-os com uma espécie de
furor. Gigantesca máquina que trabalha à máxima velocidade, engole
imbecis aos milhares e espalha-os pelo mundo fora, ao sabor dos seus
enormes caprichos.” Ora: “Nenhuma outra sociedade terá feito, como a
nossa, um consumo tão prodigioso desses infelizes.” E assim continuará a
ser, per omnia secula seculorum.
Esta progressão tão rápida e devastadora de imbecis não seria
possível sem o contributo activo de um jornalismo cada vez mais
dependente, medíocre e tendencioso, impregnado por uma “cultura do
narcisismo”, que é a marca das sociedades contemporâneas. É olhar para a
TV e vê-los a toda hora em todos os canais, a falar sobre tudo e mais
alguma coisa – sejam eles (ou elas) políticos, jornalistas,
comentadores, apresentadores, aprendizes de feiticeiro, peritos disto e
daquilo, cozinheiros e outros bichos mais.
Amanhã ou depois, já ninguém se lembrará do que eles disseram – se
calhar, nem eles próprios! –, mas falam, falam, falam, à vontade ou
titubeantes, agressivos ou deprimidos, insolentes ou manhosos,
didácticos ou joviais, de perna traçada ou cotovelos na mesa, a cruzar
os dedos ou a agitar as mãos sem parar, de pálpebras semicerradas ou
sobrolhos carregados. Uns a julgar-se espirituosos, outros com
desconforto, outros ainda tentando mostrar competência, quase todos
enfáticos, prolixos e enfatuados, procurando “descer” até às massas
ignaras, para as fascinar e persuadir com palavras fúteis, ou exaltar
com gritinhos histéricos, ou ludibriar com promessas vãs, apelando ao
lado mais irracional das multidões. Mas estas, quando se enfurecem, são
tão destrutivas como aqueles micróbios que activam a dissolução dos
corpos debilitados e dos cadáveres.
Os imbecis enchem o mundo e são perigosos. Como a História, sobretudo
a do séc. xx, insiste em recordar. Todavia, esta é uma sociedade em que
a memória se esfuma num ápice e o prazer narcísico se insinua nos ecrãs
dos televisores e dos smartphones. Ambos proporcionam instantes de
glória efémera que os narcisistas almejam. Para os que não passam na TV,
uma selfie basta, com um artista da bola ou um Presidente da República,
para confortar o ego e crer que a salvação está ao alcance da mão. E,
entretanto, Trump, Putin, Kim Jong-Un, Maduro, Guaidó, Bolsonaro,
Duterte, Erdogan, Orbán, Kaczynski, May, Salvini e tantos outros ameaçam
um mundo sobrelotado de imbecis…
IN "i"
11/03/19
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