08/12/2018

FILIPE LUÍS

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Com quatro dedinhos apenas

António Costa imitou Jorge Jesus e ergueu quatro dedos, celebrando a “cabazada” do tetra-Orçamento. Mas enfermeiros, guardas, estivadores, juízes e professores mostram-lhe que o jogo ainda não acabou

Há uns anos, o treinador Jorge Jesus, então no Benfica, ergueu quatro dedos, exibindo-os perante o seu colega do Nacional da Madeira. A sua equipa acabava de marcar o 4.º golo e estava a ganhar por 4-0. Manuel Machado, o técnico “madeirense”, não perdoou a Jesus a falta de fairplay, tendo, depois, falado de “vinténs” e de “cretinos”. Há poucos dias, António Costa imitou Jorge Jesus. PSD e CDS ocupavam, nas bancadas parlamentares, o lugar que Manuel Machado ocupava no banco do Nacional, quando António Costa, no dia da aprovação do 4.º Orçamento do Estado da Legislatura, perante as câmaras de TV, ergueu bem alto quatro dos seus dedos.

Isto é: o gesto destinava-se a todos quantos puseram em causa a viabilidade da “geringonça”, pelo que os parceiros à esquerda deviam ficar contentes. Mas talvez não tenha sido bem assim. O gesto de Costa é uma declaração de vitória pessoal – e isso também os atinge. O jogo ainda não acabou.
A um ano de eleições, já se percebeu que o primeiro-ministro vai pagar, em poucos meses, a paz social que andou a comprar durante três anos de estado de graça. Justiça, Saúde, Educação e transportes são as várias frentes de combate com que se deparam alguns dos seus ministros (Francisca Van Dunen, Marta Themido, Tiago Brandão Rodrigues e Ana Paula Vitorino). E todos têm dado sinais de desorientação política, o que deve ser cobrado, não aos próprios, mas aos ministros mais políticos do Governo, a começar pelo primeiro “inter pares”. Van Dunen, confrontada pelo protesto dos guardas prisionais, mostra superficialidade e candura. Themido, perante o caos provocado pelos enfermeiros, revela timidez e ausência. Brandão Rodrigues, no longo barço de ferro com a Fenprof, manifesta esgotamento e entrincheiramento. E Ana Paula Vitorino, no caso dos estivadores, alardeia impotência e irritação.

Hospitais, prisões e escolas estão ameaçadas pelo caos. Seguem-se os bombeiros e os comboios. E outros estarão à espera do resultado que consigam os professores para cercar o Governo numa onda de exigência total, na questão das reposições salariais pelo tempo de serviço congelado.

Parafraseando António Costa, agora noutro contexto, o que está em causa é a “catástrofe orçamental”.
A paralisação dos enfermeiros terá obrigado à suspensão de cerca de 5 mil cirurgias. Só em Coimbra, são mil. Será necessária uma década para normalizar o serviço. O protesto já afeta crianças e doentes de cancro. O sindicato, ou o Estado, ou ambos, arriscam ser responsabilizados, política e criminalmente, pelo aumento da morbilidade da população utente do SNS e, pior ainda, por eventuais óbitos decorrentes da falta de assistência. A situação incomoda pacientes e famílias a um nível insuportável, prejudicando a Segurança Social e a própria produtividade - logo, o PIB.

A greve intermitente dos juízes e o braço de ferro dos oficiais de Justiça atrasa ainda mais uma função de soberania que já de si se enreda num novelo de morosidade inimiga da economia e do investimento – com as consequentes sequelas no PIB.

O beco sem saída do boicote ao trabalho dos precários do Porto de Setúbal – talvez a luta mais justa das que estão no terreno… - põe em causa a continuidade laboral do nosso maior exportador, a Autoeuropa, com todas as consequências que isso pode acarretar para a economia da populosa região da Península de Setúbal que, mais coisa menos coisa, gira toda à volta da unidade fabril de Palmela.

Para não falar da própria sustentabilidade da atividade portuária, numa cidade tradicionalmente vulnerável a crises sociais. Nem é preciso referir, de novo, o PIB…
Falar destes três casos é falar de economia e do crescimento do País – ou da falta dele. E o Governo devia ser mais pró-ativo, se não estivesse manietado pela sua própria narrativa de sucesso e paralisado pelo auto-contentamento do tetra-Orçamento da “geringonça”.

Mas há mais: a luta perpétua dos professores, que acaba de entrar, nas palavras de Mário Nogueira, na fase de “guerra total”, ameaça vir a afetar o último ano letivo do mandato do Governo, com consequências ainda difíceis de antecipar no rendimento dos alunos e, sobretudo, na sua avaliação: a greve aos exames costuma ser uma arma difícil de combater pelo poder político.

E a longeva luta dos guardas prisionais ameaça colocar um problema de segurança pública e alarme social dentro e fora das prisões, tudo a contribuir para o clima de falência dos serviços públicos cruciais e potenciação do descontentamento geral da população.
Funcionários judiciais, professores, juízes, guardas e enfermeiros querem, afinal, aquilo que a troika lhes levou e o setor privado nunca terá: “dignificação das carreiras”, “descongelamento de promoções”, “reposição dos salários referentes ao tempo congelado”. Quem pagaria tudo isto? A resposta é: os impostos de todos, sobretudo os do setor privado, que foi ainda mais fustigado pela troika (para além dos males que atingiram a Administração Pública, levou ainda com o flagelo do desemprego). Ou seja, os que teriam de pagar todas estas reivindicações são, em primeiro luigar, os que nunca terão direitos equivalentes a elas. E se é indesmentível que Passos Coelho tentou virar trabalhadores contra trabalhadores, dividir entre a função pública e o privado, também é verdade que tal desígnio nunca medraria se não houvesse condições objetivas para a cultura do ressentimento. Como está, de novo, a verificar-se.

O clima geral de animosidade e convulsão laboral afetará as famílias, condicionará o quotidiano da população e espicaçará a má disposição dos eleitores. Resta saber se o Governo tem condições para controlar os danos e passar a navegar, agora, em mar encapelado, bem diferente da calmaria laboral dos últimos anos. E se a António Costa, obcecado pela tetra-orçamento, ainda lhe sobra capacidade para voltar a demonstrar o seu talento de negociador. Ou se, pelo contrário, perdeu esse toque de Midas que transformava a poeira sindical no ouro da paz social.

Mas o secretário-geral do PS tem, também, de queixar-se de si próprio. A mensagem incontinente das reposições salariais, da recuperação do poder de compra, do virar de página da austeridade e da terra onde corre o leite e o mel tem agora a fatura de convulsões laborais que podem provocar o colapso de serviços públicos fundamentais e lançar o pânico no Governo. Depois de aumentar, para lá do razoável, as expetativas da retoma e da alternativa ao programa liberalizante da direita, António Costa pode estar, agora, prisioneiro no seu próprio labirinto.

No que ao PCP diz respeito, a luta continua. À falta de melhor, Jerónimo de Sousa é, neste momento, o virtual líder da oposição. Esqueçam a aprovação do Orçamento para 2019: o que os comunistas puderem fazer para recuperar um eleitorado que parecia estar a fugir para o PS, nas autárquicas de 2017, com certeza que farão. A ironia da política acabará por unir esquerda e direita no mesmo interesse comum: impedir a maioria absoluta do PS.

PCP e BE sabiam que chumbar o Orçamento, este ano, teria sido oferecer a maioria absoluta, de mão beijada, ao PS. Aprovando-o, podem manter o Governo em lume brando, em 2019, e tentar retirar-lhe essa possibilidade. Como ensina Lenine, a revolução avança por saltos em frente. O PCP, que é relevante na rua, usará todas as armas para não voltar à irrelevância no Parlamento. Não há “acordos de posição conjunta” grátis. Quatro dedos não chegam para dar a mão.

IN "VISÃO"
07/12/18


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