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IN "A BOLA"
19/11/18
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Era uma vez…
Era
uma vez um turista norte-americano, que visitava Israel. Era um homem
de espírito, um observador e deixou o que viu, em rápidos apontamentos.
Subiu serras talhadas a pique sobre o deserto; percorreu quilómetros,
para compreender o ódio de cinza e crepúsculo, que divide os árabes e
israelitas; passeou por jardins com flores vermelhas como lábios
húmidos; e, por fim, numa hora doirada de fim da tarde, visitou um sábio
que lhe disseram ser pessoa de simpatia e fraternidade inigualáveis e
com uma rara intuição para descobrir a solução dos mais graves problemas
da vida. Entrou na casa do sábio e nem um móvel, nem um quadro, nem uma
cadeira, nem uma garrafa de água lobrigou. O sábio, para além do que
vestia, parecia viver sem mais nada. “Mestre, como consegue viver só
com a túnica que o cobre?”. Solenemente, exclamou o sábio: “Mas você
também está diante de mim, sem mais nada, para além da roupa que o
veste”.
E
o turista insistiu: “Assim é, mas eu sou um turista, estou aqui de
passagem”. E o sábio, com energia e com ritmo: “E eu também”. De facto,
todos estamos, neste mundo, como o turista norte-americano – de
passagem. Albert Camus, saciado, fatigado de pensar concluiu que a vida
era um absurdo e que o absurdo se vencia, como Sìsifo, num trabalho
inútil e cansativo. Nietzsche e Gide atribuíram à “morte de Deus” a
plena realização do ser humano. Sartre e Camus (que não dispensava o seu
futebol, entre amigos) não se imobilizaram nos valores de Gide e
Nietzsche e duvidaram da “plena realização”, neste mundo, do ser humano,
com ou sem Deus. Não lhe resta senão a ingénua sinceridade de dar
sentido ao sem sentido da vida, de se imaginar afinal um Sísifo feliz.
Recordo o Edgar Morin de O Paradigma Perdido: o ser humano é fundamentalmente um ser imaginante…
Mas
que a função imaginante do sujeito não nos leve a uma realidade
ficcionalizada. A presença de Alireza Rabbani, iraniano de 34 anos, “que
irá reforçar a Unidade de Performance Desportiva, que está a ser
introduzida, por Frederico Varandas, presidente do Sporting” é de uma
atualidade indiscutível, desde que se não pense que o futebolista é um
“homem-máquina”. O melhor futebolista não é o que corre mais, mas o que
verdadeiramente sabe jogar futebol. O pianista, antes de um concerto,
toca piano, não anda às voltas ao piano, sob pena de não preparar
adequadamente o concerto. Também o ingresso, no Sporting, do Dr. João
Pedro Araújo, especialista em Medicina Física e Reabilitação, como novo
médico de equipa do Sporting Clube de Portugal, significa que há
indiscutível rigor científico no departamento médico dos “leões”.
O
Dr. João Pedro Araújo apresenta uma bem fundamentada experiência
profissional, que nunca é demais realçar. Mas que não se esqueça o
seguinte: “se tomarmos como exemplo a Medicina, verificamos que, nos
últimos cem anos, se passou do estudo da anatomia descritiva ao da
biologia celular e à imunologia. Ao querermos estudar o saber actual da
Medicina e as regras epistemológicas que lhe dão sentido, não iremos
analisar as metodologias da investigação anatómica do século XIX, mas
sim debruçarmo-nos sobre a estrutura do pensar na actual investigação do
nosso sistema imunológico. O objeto central da medicina mantém-se
inalterado (prevenir, tratar as doenças e prolongar a vida) mas mudou
radicalmente o núcleo central do estudo, que pode contribuir para que a
sua finalidade se cumpra” (José Gameiro, Voando sobre a Psiquiatria,
Edições Afrontamento, Porto, 1992, pp. 31/32). Na Medicina, hoje (se
bem penso) não há doenças, há doentes. E o doente é
corpo-mente-sentimentos-emoções -desejos-natureza-sociedade-cultura (e
muito mais que o mistério, que o ser humano é, não permite que ainda se
veja). E é sistémica a metodologia que pode observá-lo e estudá-lo.
Da
leitura do Dr. José Gameiro se infere (o Dr. José Gameiro é um
prestigiado médico psiquiatra e pessoa de amplo e arejado civismo) que
são vários os analisadores epistémicos que atravessam a psiquiatria. Não
serão tantos, nas outras especialidades médicas, onde é mais fácil o
consenso, mas qualquer modesto epistemologista, como eu, que não sou
médico, nem portanto algum dia beneficiei de qualquer prática clínica,
depressa chegará à conclusão que, para um sistema complexo, deve
corresponder uma metodologia complexa. Quando escrevo (há meio século)
que “o Desporto é o fenómeno cultural de maior magia no mundo
contemporâneo”, veja-se como é complexo o trabalho do especialista em
Medicina do Desporto, tendo em conta a complexidade humana, onde cabe a
contextualização do Desporto de Altos Rendimentos, tantas vezes
inquinada de uma irracionalidade assustadora e do mais exagerado
economicismo. Sem dispensar a ciência, mas só com ela, não há progresso
desportivo, sem um epistema sistémico, onde o que é mais autenticamente
humano se pesquise, se organize e se respeite.
Dizia o Adorno, no Minima Moralia,
que “hoje a tarefa da arte é trazer o caos para a ordem”. Ora, se o
“potencial crítico” da Arte é grande, não é menor o “potencial crítico”
do Desporto e da Dança e do Jogo Desportivo (três exemplos, entre
outros). Miguel de Unamuno (1864-1936), no seu livro Del Sentimiento Trágico de la Vida,
adianta que é um “homem de carne e osso” que faz a História. E isto sem
a necessidade de submeter-se a princípios envelhecidos, ou a
metafísicas do tempo do “Teorema de Pitágoras” ou do “Princípio de
Arquimedes”. Para Unamuno, este era o princípio básico, bem
anti-cartesiano: “Penso, logo não existo”. Mas próximo, bem próximo da
frase cortante de Kierkegaard: “A existência é uma rocha contra a qual
naufraga o pensamento puro”.
É um “homem de carne e osso”
que faz a História? O Desporto assim o prova. Com vontade, porém, de
transcendência, que o mesmo é dizer: sentindo o “ainda não” de Ernst
Bloch, e portanto com inquietude, insatisfação e esperança. Faço um
parêntese, para lembrar que as ideias de Bloch, para além de reduzidos
círculos intelectuais, são poucos os estudiosos que as conhecem, no
nosso País. De facto, nenhum ser humano se sente plenamente realizado,
no “aqui e agora” que vive. Pessoas, com a alegria de viver a
estourar-lhes das bochechas, são cada vez menos. E, com uma jovialidade
hospitaleira, menos ainda são. Em ruas coalhadas de letreiros luminosos,
não faltam os embuçados que se destacam de um desvão. Há que fazer um
mundo novo, que me permita que eu seja novo também. Perguntaram a Ernst
Bloch: “Quem és tu’”. E ele: “Sou, mas ainda não me possuo”. Não resta a
cada um de nós senão sermos um “não” que busca realizar-se. Vou tentar,
agora, traduzir, para o senso comum, as tarefas em que Foucault tentou
realizar-se, como pensador: Que práticas discursivas posso dizer, no
mundo que me rodeia? Posso estabelecer alguma relação entre o que digo e
o que faço? Depois de mim, o mundo ficará inalteravelmente o mesmo?...
Que pode o Dr. Frederico Varandas dizer, no meio das ruínas em que
alguns, que se autoproclamam sportinguistas, deixaram o Sporting? Por
muito que me pese neste ponto, não acompanho muito à letra os que não
descobrem graves descuidos em antigos dirigentes deste grande clube, que
eu aprendi a admirar, quando, rapaz ainda, via jogar os “cinco
violinos”. Era uma vez um Clube que, durante a década de 40, podia
apresentar uma das melhores equipas de futebol europeias. O futebol
ainda não conhecera nem Rinus Michels, nem Cruyff, nem Rijkaard, nem Van
Gaal, nem Guardiola, nem José Mourinho, treinadores inapagáveis, na
história do futebol. Mas conheceu, depois. outros deuses que, nas
Academias, foram cuspidos e agredidos. Onde está o progresso no futebol?
O ser humano é aquele animal louco, cuja loucura inventou um certo
futebol…
* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto
IN "A BOLA"
19/11/18
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