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A geração superficial
Nós, os professores de Português, somos confrontados com a repulsa dos alunos ao verbo escrever. Vivemos este descalabro diariamente.
Qualquer
professor hoje em dia se apercebe das dificuldades que os alunos sentem
quando se lhes pede um texto, qualquer que seja a sua tipologia. E
então nós, os professores de Português, somos confrontados diariamente
com a repulsa dos alunos ao verbo escrever. Vivemos
este descalabro diariamente. Por isto mesmo, em mais um sábado à noite
de trabalho - enquanto lá fora a chuva caía, as pessoas normais dormiam e
eu corrigia a enorme pilha de trabalhos escritos dos meus alunos – não
fiquei surpreendida ao ler esta advertência de um aluno: Bom dia ou boa noite, professora. Nas próximas duzentas a trezentas palavras lerá aquela que foi provavelmente a composição que mais me custou escrever. Por isso mesmo, sente-se, coma qualquer coisa e tenha misericórdia de mim.
Sim, a maior parte dos alunos tem aversão à escrita porque não lê, sentindo uma enorme dificuldade em escrever, problema que aumenta de ano para ano. Ler estimula o raciocínio, desenvolve o vocabulário, aumenta a capacidade de interpretação, diminui os erros ortográficos, ajuda a produzir textos coesos, desenvolve a capacidade argumentativa, só para referir algumas vantagens. De facto, se vocês não lerem, como irão conseguir escrever? A esta pergunta, alguns alunos respondem-me de imediato: Ó stora, mas a gente lê. Todos os dias lemos imensas coisas na Internet... Bingo!
Preocupada com esta realidade – a constatação crescente de que os alunos sentem cada vez maior dificuldade em redigir um texto, por pequeno que seja - fui à procura de respostas. O livro de Nicholas Carr, Os Superficiais - O que a internet está a fazer com os nossos cérebros (Gradiva), seguindo a proposta da biblioterapeuta Sandra Barão Nobre, ajudou-me a compreender melhor este flagelo. De facto, enquanto lia este livro dei várias vezes comigo a concordar com o autor, ao mesmo tempo que transferia o que ele afirma para aquilo que eu constato diariamente nas aulas e no contacto com os alunos. A geração com que trabalho é uma geração alienada e cada vez mais superficial. A internet, sabemo-lo, veio mudar o mundo. Está a mudar as nossas vidas e começou já a transformar os nossos cérebros.
A dependência do computador e da ligação à rede começa a interferir na forma como percecionamos o mundo, provocando danos irreparáveis na maneira como utilizamos a linguagem. Penso que reside aqui, neste uso e abuso que fazemos das tecnologias, uma das principais causas das dificuldades crescentes dos alunos no uso da escrita. O que pode então a Ciência dizer-nos sobre as consequências do uso da internet nos nossos cérebros e nos cérebros dos nossos alunos? Muito mesmo. Vários estudos realizados por educadores, investigadores de diferentes áreas como psicólogos e neurobiólogos mostram que quando os alunos estão em rede (o que acontece a maior parte do tempos nos dias que correm), o ambiente em que se encontram promove uma leitura negligente e rápida. Ora, neste contexto, o pensamento torna-se também ele apressado sendo a aprendizagem que fazemos das coisas cada vez mais superficial.
O que fazemos quando estamos em rede acarreta consequências neurológicas impercetíveis no imediato mas cujo efeito é preocupante. Não é preciso ser-se professor para se constatar que a capacidade de concentração dos jovens e adolescentes é cada vez menor. Na verdade, tal como o tempo gasto a explorar páginas web (na maior parte das vezes sem qualquer conteúdo de interesse) suplanta o tempo que passamos a ler noutros registos e formatos (já nem me atrevo a referir-me aos livros), também o tempo que se consome a redigir mensagens curtas de texto (vulgo sms) suplanta o tempo que se utiliza a escrever um parágrafo, vários parágrafos, um texto... Deste modo, enquanto saltitamos entre hiperligações que nos levam a nenhures perdemos a oportunidade de refletir silenciosamente. Eis o ponto seguinte desta rede de vazios. O silêncio é praticamente inexistente na vida dos nossos alunos. Dentro ou fora da aula, os alunos não o conhecem. Logo, os antigos processos e funções intelectuais que permitiam o raciocínio aprofundado e a reflexão começaram a destruir-se e a desaparecer. O cérebro recicla os neurónios e as sinapses não utilizadas, dando-lhe outras tarefas mais urgentes. É certo que os alunos possuem e/ou ganharam outras competências que nós não possuímos mas perderam capacidade de foco e de concentração. Segundo Nicholas Carr, o nosso cérebro está a regredir ao cérebro primitivo ou reptiliano, em alerta e distração permanente.
Facto:
estamos perante uma geração cada vez mais alienada e superficial que
pensa cada vez com menor profundidade e que, como consequência,
relaciona ideias e conceitos de forma cada vez mais rudimentar. Perante
isto, é quase impensável que quando peço aos meus alunos para
pesquisarem informações suplementares sobre um determinado tema, eles
queiram aprofundar seja o que for. A grande questão que se nos coloca
enquanto professores é se conseguiremos encontrar um ponto de equilíbrio
entre a utilização abusiva que os nossos alunos hoje em dia fazem de
todo o aparato tecnológico que têm à sua disposição e a necessidade de
silêncio e introspeção que a leitura profunda de um livro pode
proporcionar. Porque rodeados que estão de estímulos tecnológicos, ler
torna-se mais difícil, aprofundar é um esforço hercúleo e escrever uma
quimera.
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Por tudo isto, decidi responder ao meu aluno: Bom
dia ou boa noite, querido aluno. Nas duzentas a trezentas palavras que
escreveste, li aquela que foi provavelmente a composição que mais me
custou ler. Por isso mesmo, levanta-te e desliga-te. A internet promove
uma leitura diagonal dos temas e dá-te apenas fragmentos dispersos do
conhecimento que procuras. Sim, querido aluno, a internet é uma
biblioteca de fragmentos. Por isso mesmo, come qualquer coisa e abre um
livro: a plasticidade cerebral espera por ti.
*Carmo Miranda Machado é formadora profissional na área comportamental e professora de Português no ensino público há vinte e sete anos, tendo trabalhado com alunos do 7º ao 12º anos de escolaridade. Possui um Mestrado em Ciências da Educação (Orientação das Aprendizagens) pela Universidade Católica Portuguesa e tem como formação base uma Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Nova de Lisboa. Tem dedicado a sua vida às suas três grandes paixões: o ensino, a escrita e as viagens pelo mundo. Colabora na Revista Mais Alentejo desde Fevereiro de 2010 como autora da crónica Ruas do Mundo, tendo ganho o Prémio Mais Literatura atribuído por esta revista nesse mesmo ano. Publicou até ao momento, os seguintes títulos pela editora Colibri: Entre Dois Mundos, Entre Duas Línguas (2007); Eu Mulher de Mim (2009); O Homem das Violetas Roxas (2011) e Rios de Paixão (2015).
IN "VISÃO"
13/11/18
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