30/10/2018

PEDRO FILIPE SOARES

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Cavaco Silva: a assombração

No que toca aos maus exemplos do Portugal democrático, Cavaco Silva tem a caderneta cheia.

Cavaco Silva lança hoje um novo livro com as memórias do seu segundo mandato presidencial. Diz o ex-inquilino de Belém que, assim, termina a prestação de contas aos portugueses. É verdade que o país tem muitas contas a ajustar com Cavaco Silva, mas não creio que isso se resolva com livros de (más) memórias. Da minha parte, dispensava essa assombração.

O curriculum de Cavaco Silva quase parece cadastro. No que toca aos maus exemplos do Portugal democrático, Cavaco Silva tem a caderneta cheia: desperdício de milhões de euros de fundos europeus, ludíbrio das famílias que perderam muitas poupanças nas promessas de um capitalismo popular e privatizações de empresas públicas estratégicas ao desbarato.

Para quem está a pensar que, pelo menos, o professor não esteve envolvido em nenhum escândalo de corrupção, recordo três letrinhas apenas: BPN. O processo do Banco Português de Negócios está no pódio das fraudes do século XXI e teve como grandes protagonistas os amigos e discípulos de Cavaco Silva.
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Eu leria com muito mais interesse as memórias desses anos do BPN e da SLN, mas o ex-Presidente sobre isso sempre teve uma curiosa memória seletiva. Seria mais útil essa informação, porque talvez pudesse ajudar o Estado a recuperar parte dos quase quatro mil milhões de euros que teve de meter no buraco laranja. Contas feitas, são cerca de 366 euros que cada contribuinte teve de pagar pelo buraco criado pelas negociatas do BPN. Ver esse dinheiro de volta seria o mais importante serviço público que Cavaco Silva podia prestar ao país. Sr. professor, pense nisso.

Mas, regressando ao livro que hoje chega às bancas, diz-se que se debruça em particular sobre dois períodos: a fase irrevogável de Paulo Portas e a criação da “geringonça”. À acusação de infantilidade dirigida ao antigo líder do CDS, deverá ser o próprio a responder. Agora, não há novidade na sua falta de patriotismo, como demonstrou a permanente subserviência a Bruxelas.

Já no que toca ao período que se seguiu às eleições de 2015, a revisitação histórica de Cavaco Silva roça o absurdo. Este arauto da desgraça, que fazia as delícias dos velhos do restelo, escreve no livro que não duvidou que a “geringonça” veio para ficar. Cavaco interpreta Cavaco para nunca ficar mal na fotografia. O único problema é que esta mentira não é minimamente credível, como todo o país testemunhou.

Cavaco Silva ensaiou uma crise política a seguir às eleições legislativas. Foram 50 dias em que o país ficou refém do choque cavaquista com o resultado eleitoral. Para ele, os votos no Bloco de Esquerda e no PCP nunca poderiam influenciar um governo, eram votos de segunda na sua enviesada conceção da democracia portuguesa. A direita estava agarrada ao poder e Cavaco Silva o principal ator deste braço de ferro. No fim, venceu a Constituição e o voto popular, perdeu a visão redutora e enviesada de Cavaco.

Para a história ficará a sua intervenção pública na indigitação de António Costa para formar governo. Se alguém quiser saber o significado de azia política tem nesse ato um exemplo magistral. Vencido perante o Parlamento, Cavaco Silva expôs aí o seu desejo de um desfecho trágico para a solução política que estava a dar os primeiros passos. Quatro anos depois, o livro expõe essa acidez monumental.

As vitórias que o país alcançou desde 2015 contam-se como derrotas profundas de Cavaco Silva. O aumento do Salário Mínimo Nacional, que em quatro anos subirá 95 euros mensais, não causou desemprego nem recessão económica. A realidade mostrou como foi essencial para a criação de emprego desmontando a teoria neoliberal de Cavaco.

As contas públicas não colapsaram com a eliminação dos cortes salariais, o aumento dos apoios sociais, a eliminação da sobretaxa de IRS ou com o aumento das pensões. E até a poupadinha pensão do professor foi beneficiada, mostrando que não guardamos ressentimentos.

A realidade demonstrou o quão errado estava Cavaco Silva. Era possível parar a austeridade. Não nos deixa saudades.

* Lider parlamentar do Bloco de Esquerda

IN "PÚBLICO"
23/10/18

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