09/10/2018

FERNANDA CÂNCIO

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Aquela grande galdéria 
e o nosso Cristiano

O país que se escandalizou com o acórdão da "sedução mútua" é o mesmo que olha para o vídeo de Las Vegas e diz: olha para ela a fazer-se a ele, esperava o quê?

Confesso que quando escrevi sobre o já famoso acórdão do Tribunal da Relação do Porto não esperava que o caso causasse tanto escândalo. Por dois motivos: porque me pareceu, no seu sexismo e moralismo punitivo da vítima, mais do mesmo em relação a muitos outros que foram sendo notícia, e porque considero o machismo da justiça portuguesa um espelho do da sociedade (demonstrando a negação, pela associação sindical dos juízes, do machismo da judicatura a evidência de quanto ele é estrutural e perigoso, por nem sequer refletido e consciencializado).
Assim, foi para mim uma agradável surpresa constatar que não só os comentadores formais se indignaram com os termos da decisão como até no mundo cavernoso nas caixas de comentários dos jornais e do Facebook poucos foram os que se atreveram a julgar a vítima. No entanto, não fiquei convencida de que algo tinha realmente mudado. Não foi preciso esperar muito para constatar o quanto a minha desconfiança era fundada.
Não; não foi decerto por prezar a liberdade e a autodeterminação pessoal e sexual da vítima de Gaia, então com 26 anos, que tanta gente se enraiveceu com o acórdão, nem por dar como assente a definição de violação como penetração sem consentimento e, já agora, porque parece haver muito quem se questione sobre, o consentimento como ausência de dúvida (na dúvida pergunta-se).
Não pode ter sido: fosse esse o motivo e não assistiríamos agora a este coro de gente que critica e julga uma pessoa sobre a qual nada sabe, que fala dela - então com 25 anos - como "uma mulher madura" (querendo dizer "sabidona"), que certifica que se uma mulher dança com um homem e o abraça e a seguir sobe - sozinha ou em grupo - para a sua suite "só pode saber o que lhe vai acontecer". Pessoas - incluindo mulheres -- que afirmam que "ela sabia o risco que corria quando o seduziu". Gente que acha que se uma mulher flirta com um desconhecido numa discoteca só pode ser puta, e que se sobe para o seu quarto só pode ser puta, e se é puta a noção de consentimento não se lhe aplica - porque, pelos vistos, as putas não podem ser violadas, existem mesmo para isso, para não poderem dizer não, para se lhes fazer tudo sem pedir licença.
Gente - homens e mulheres - que falam dos homens como incapazes de controlar os seus instintos sexuais, de não "aproveitar uma ocasião", e das mulheres como presas por definição, que devem por isso ter o máximo cuidado para não se colocarem "a jeito". Gente para quem, obviamente, a noção de violação no casamento ou no seio de uma relação existente não deve fazer o menor sentido - então, se uma mulher está com um homem, por hipótese, na cama, tem de lhe dar o que ele quiser mesmo que não lhe apeteça, certo? --; gente que crê que no momento em que uma mulher se aventura com um homem, conhecido ou desconhecido, em sexo consensual, não pode dizer ao fim de dez minutos "olha já não me apetece" ou "anal nem penses", ou "sem preservativo não faço" porque se está ali habilitou-se, tem de se submeter.
Gente que ao assim argumentar, achando que está a defender Cristiano Ronaldo, não sabe que está a descrever aquilo a que se dá o nome de "cultura da violação", ou seja, todos os motivos pelos quais é possível que ele ou outro homem qualquer, se colocado numa das situações descritas, possa achar que não está a fazer nada de mais, muito menos a violar, se "se servir até ter vontade", mesmo que pelo meio oiça um não. Porque o que toda esta gente acha, fervorosamente, é que nessas circunstâncias o não de uma mulher a um homem nada significa, não é para ligar, o mais certo é ser, como até pouco tempo, antes da entrada em vigor da Convenção de Istambul, se lia nas doutas anotações de grandes penalistas ao nosso Código e nas fundamentações das sentenças (a mais recente das quais em 2011, no caso da paciente grávida de um psiquiatra), "apenas o jogo de simulada esquivança", "não devendo ser confundido com efetiva resistência".
Não sei - o que li até agora não me permite sequer ter opinião - o que sucedeu naquele hotel em Las Vegas. Mas uma coisa sei: as reações que vejo, até de comentadores encartados que fingem não ter "lado" para pelo meio certificarem que Kathryn Mayorga "não pode ser nenhuma santa porque subiu ao quarto", são em absoluto repugnantes no seu machismo visceral. E ofendem-me pessoalmente - como mulher livre e dona de si, que se arroga o direito de dançar e flirtar com quem quiser, de subir a quartos quando apetecer, de dizer não e vê-lo acatado. Se isso é ser galdéria e pedi-las, é o que sou - e estarei do lado de qualquer mulher que seja vilipendiada por tal.
Como esperaria que comigo - e com Kathryn - estivessem, nisso, todas as mulheres que não querem viver num mundo em que a sua vontade vale menos do que a dos homens e os homens que não se veem como predadores à espera de uma oportunidade.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS
07/10/18

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