14/10/2018

ANDRÉ BARATA

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#Metoo e todos nós

Não nos libertámos ainda, homens e mulheres, nem a nós nem aos nossos filhos, de uma cultura de poder que tem na sua base uma compreensão da própria sexualidade enquanto violência.

Em Outubro de 2017, o movimento #Metoo globalizou-se com uma hashtag que se tornou viral nas redes sociais. Um ano depois, acerta em cheio no amor próprio do universo português. O cidadão nacional mais conhecido da actualidade, talvez mesmo de toda a história do velho país, um ídolo à escala global, foi alvo de uma queixa formal de violação. Em jornais, televisões e redes sociais, irrompem reacções de grande violência, sucedem-se invectivas de macartismo e de totalitarismo, proclama-se que a liberdade está ameaçada.

Mas onde está o macartismo? Na mulher que  exerce o direito legal de apresentar uma queixa e levar a julgamento um homem — com as garantias legais inegociáveis, claro, de presunção de inocência e de que in dubio pro reo? Ou, pelo contrário, em quem a manda calar com intimidações, degradando-a em epítetos imorais, julgando-a sumariamente fora de qualquer tribunal?

Vociferou-se ao longo de uma semana por não se ilibar sumariamente o ídolo enquanto se ateava a fogueira onde se quer fazer arder as novas bruxas do nosso tempo. Nenhuma mulher está a salvo de ser uma delas. E nem precisa de ser uma activista do #Metoo.

Mulheres e meninas, não saiam de casa à noite, não usem saias curtas nem decotes arrojados, não bebam copos, não se divirtam, não conversem com homens, e sobretudo não se atrevam a desejá-los. 

Ou então sujeitem-se, sem complacência, à condição de que tudo vos possa acontecer, porque um homem assim provocado estará sempre só a agir de acordo com os seus instintos incontroláveis. A burca é usada para cobrir mulheres islâmicas apenas por causa desta concepção doentia de homem incapaz de se controlar, caso vislumbre uma nesga de corpo feminino. Um horror, ver os homens assim representados. Mas também entre nós persiste esta representação.

Atenção: quem defende o direito de uma alegada vítima ser ouvida não está a querer fazer dos homens bestas nem a colocar a liberdade sob ameaça (a liberdade de quê? De ofender sexualmente mulheres? De prescindir do seu consentimento?). Estas acusações, e as acusações de caça aos homens, servem bem uma nova caça às mulheres que não se conformam, essas bruxas!

O #Metoo, para estes que o acusam de macartismo e totalitarismo, é ameaçador não porque alguma liberdade universalizável esteja em causa, mas porque atinge um esquema de dominação social, histórica e geograficamente transversal: o da dominação sexual. Não nos libertámos ainda, homens e mulheres, nem a nós nem aos nossos filhos, de uma cultura de poder que tem na sua base uma compreensão da própria sexualidade enquanto violência. Assim o evidencia o calão, que expõe enquanto linguagem sem inibições o acto da penetração como o arquétipo simbólico de violência. Sobre a mulher, mas também sobre o homem. A consumação sexual tomada como um acto de consumação de poder, demonstrado por quem penetra sobre quem é penetrado.

Uma cultura da sexualidade assim comprometida com a violência, além de degradar a sexualidade, que devia ser uma experiência boa e sem fantasmas, permite olhar a violência sexual como se fosse apenas um excesso, mais ou menos inaceitável, como se fosse apenas uma matéria de grau numa escala, na verdade toda ela viciada.

A hipocrisia vai ao ponto de tornar o consentimento um mero passo protocolar, congeminável de forma tácita. Se uma mulher disse que quer fazer A, então tem de aceitar B, C, D e tudo o mais que o parceiro queira. Se ela não consentiu em nada explicitamente, mas entrou no jogo da sedução, então já não se pode recusar a nada. Porque, em matéria de consideração social, ou é virgem, simbolicamente virgem para sempre, ou é uma puta.

É claro que um casal normal não se permite entender que consentir numa relação sexual seja consentir tudo. Porque haveria de ser diferente com a mulher que mal se conhece? É simples e cruel: a esposa, a filha, a mãe, a irmã de cada homem estão resgatadas de uma categoria abstracta de mulher, porque esta está, por defeito, cultural e socialmente identificada como devedora de satisfação sexual. Pagar-lhe já é uma concessão. O filho/a filha da p. é ofendido/a não por a sua mãe ser uma prostituta, mas por não ser mais do que uma mulher abstracta que não se soube resgatar.

É esta concepção de base que explica a simples grosseria do colunista Henrique Monteiro que diz que “uma santa não se meteria no quarto de hotel de um homem”, ou a boçalidade do presidente de câmara de Aveiro que fala em “dar uma esfrega nas caloiras”, ou a brutalidade de Bolsonaro que em acalorada discussão disse a uma deputada, cúmulo da desqualificação, que não merece ser estuprada por ser “muito feia”. Daqui vêm também todos os anátemas que se lançam às raparigas e às mulheres que são donas do seu comportamento, e que usam sem constrangimentos saias e calções muito curtos em bares nocturnos, sem o fazerem submetidas ou dispostas a submeter-se a um homem… essas malditas provocadoras.

“Medusa no Palácio da Justiça: Uma história da violação sexual”, (Tinta da China 2017), de Isabel Ventura, é um trabalho de fôlego que merece ser atentamente lido. Nele se identificam os principais discursos sobre a origem da violação e se traça uma história jurídico-legal deste crime, recorrendo a inúmeros exemplos de acórdãos de tribunal no nosso país.

Como uma espécie de pano de fundo cultural, a investigadora evoca o mito da Medusa, que nalgumas versões era antes uma jovem irresistível do templo de Atena. Ao ser violada por Poseidon, vê cair sobre si a fúria castigadora de Atena, que a transforma em monstro, transferindo dessa forma para a vítima a culpa. Existe uma expressão inglesa para isso: “victim blaming”. De bela e sedutora, Medusa transforma-se em ser horrendo cuja capacidade de petrificar os homens é uma maldição que a condena à solidão.

Da culpabilização das vítimas vemos ecos demasiados nos dias de hoje, em expressões como o “pôs-se a jeito”, “correu o risco”, “provocou”, “não gritou”, “não lutou o suficiente”, etc., ou nalgumas, demasiadas, decisões judiciais aplicadas a este crime com as argumentações que as justificam.  E é claro, toda a gente sabe que “um homem não é feito de ferro”.

É talvez o motivo que mais explica as baixas taxas de falsas denúncias de crimes sexuais (2,28% dos crimes denunciados, cf. “Público” online, 28 de Setembro de 2018). O facto de o abuso sexual ser o acto criminoso socialmente visto como mais degradante para as vítimas favorece nelas os sentimentos de vergonha e de autoculpabilização, os anátemas que funcionam como uma legitimação tácita dos crimes, e que têm tornado ao longo do tempo muito difícil quebrar silêncios.

Ainda há semanas o tão divulgado acórdão da relação do Porto relativizava a gravidade de um crime em que a vítima foi alvo de abuso e de penetração vaginal, por parte de dois agressores, enquanto estava comprovadamente inconsciente e incapaz de reacção. Os juízes invocaram um suposto “ambiente de sedução mútua”, que se traduz numa responsabilização da vítima, porque nela está a responsabilidade de não se ter sabido resguardar, de assegurar o seu resgate enquanto devedora de satisfação sexual. É só neste aspecto que a vítima é vista como sujeito, enquanto guardiã da sua própria virtude, e como tal responsabilizável por qualquer ataque.

Quando se dá como relevante num crime desta natureza o facto de não existirem visíveis danos físicos, a vítima volta a ser reduzida à sua condição de mera propriedade material que pode sair mais ou menos danificada de um assalto. A esposa, a filha, a irmã que assim se vê maculada e cuja desonra se estende à família. Neste mesmo acórdão, a única vez que os juízes se referem à vítima enquanto vítima é quando lhe reconhecem esse estatuto, com o qualificativo de “especialmente vulnerável”, por estar inconsciente e não se ter podido guardar.

Mas o estatuto serve-lhes apenas para lhe definirem uma indemnização pecuniária, que aliás a própria vítima nunca terá exigido, e que aparece aqui a objectificá-la, ao mesmo tempo que se atenua a culpa dos agressores como se estes se tivessem limitado a fazer um uso indevido de algo que não lhes pertencia.

Já no caso de Kathryn Mayorga,  e também das representantes do #Metoo em geral, a questão do dinheiro parece tão sensível nas reacções de tantas e tantos que as acusam de vendidas e as desqualificam enquanto vítimas, por supostamente o seu silêncio ter tido um preço, quer fosse um valor fixado, quer fosse a promessa de ascensão social.

Para esses e essas que se indignam, o #Metoo é o sindicato de todas as bruxas, a sua encarnação socialmente diabólica, fora de controlo, que desafia o esquema milenar de dominação, que confundem com civilização. Elas quebraram o silêncio, e desta vez a desgraça não recaiu sobre o marginal que pudesse eventualmente também atentar contra a castidade inocente de mães e filhas e irmãs, mas sobre o bem-sucedido e integrado, até rico e com glamour, o ícone, aquele que sempre pode comprar silêncios. 

Permitindo uma carreira, uma passadeira vermelha a vítimas que tiveram de negociar a dissimulação. Mas a recusa do silêncio é o gesto verdadeiramente libertador e emancipador do movimento #Metoo. Houve quem lhes chamasse mulheres sem carácter. É não perceber que é precisamente contra essa condição a que foram destinadas que se rebelam.

Porque, a par do poder de sedução, o poder da mulher na ordem patriarcal é um poder, ora malévolo, ora infantilizador, da dissimulação, da mentira ou da manipulação. É o pequeno poder das despojadas de poder. Vemo-lo levado ao extremo, por exemplo, na magnífica história de Margaret Atwood, vertida em série televisiva, “Alias, Grace”, ficção a partir de um episódio verídico ocorrido na época vitoriana na colónia canadiana.

A protagonista, Grace Marks, criada em casas de família burguesas, está e esteve sempre à mercê de múltiplos abusos. Originária de uma família irlandesa emigrada no Canadá, órfã de mãe, fugitiva do insuportável abuso de um pai alcoólatra, carregando desde logo essa mácula à qual se acrescenta a culpa de ter deixado para trás um molho de irmãos pequenos. Virá a ser co-autora de um duplo homicídio, de um patrão e sua governanta/amante. É condenada a prisão perpétua, conseguindo evitar a forca a que foi condenado o seu parceiro de crime, por não se perceber se ela conserva o seu perfeito juízo. Porque o sexo fraco também foi sempre muito atreito a todo o tipo de histerias e perturbações mentais.

A narrativa mantém-nos, a nós e a um médico que é uma espécie de psicólogo, na incerteza de se devemos acreditar na sua loucura ingénua de se crer possuída pelo espírito manipulador e vingativo da amiga, Mary Whitney, também ela criada, morta na sequência das complicações provocadas por um aborto, ou se estamos pura e simplesmente a lidar com a capacidade encantatória digna de uma bruxa, ou de uma Xerazade, capaz de nos manter suspensos no fio das histórias que lhe evitam a morte.

E a questão é que a diferença entre uma e outra se calhar é quase nenhuma. Foi Mary quem ensinou a Grace como desempenhar o seu papel de serva e como manter-se longe do perigo que representavam os homens, ao mesmo tempo que escarnecia com graça dos ares superiores da burguesia e tentava insuflar esperanças de emancipação motivadas pelas rebeliões que ocorriam nessa altura nas colónias britânicas do Canadá. Mary, que quis ser dona do seu destino e se deu à liberdade de uma paixão, não pode evitar ela própria a sua desgraça, engravidada por um jovem patrão.

A dominação de género, dominação sexual, dominação de classe fazem um triângulo que tem de ser desarmadilhado, por velho, civilizacional, complexo que seja. As democracias que vemos ceder todos os dias, cada vez menos liberais, apostam tudo na restauração do esquema da dominação. Esta não é uma luta do passado. É a luta pelo futuro digno de todos nós.

* Ensaio coescrito por Vera Tavares, Designer, de acordo com a antiga ortografia.

** Filósofo, Universidade da Beira Interior

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
12/10/18


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