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* Diplomata
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O primeiro pecado é ser pobre
Assim declarava o anglo-irlandês Bernard Shaw (1856-1950) e
acrescentava: Quando alguém me diz sou inculto mas é porque sou pobre,
está a desculpar um mal com outro pior; é como se me dissesse: sou coxo
mas é da sífilis. Shaw morreu velho demais para a altura - partira o
colo do fémur e respondera a jornalistas à entrada do hospital: se eu
escapar desta é porque sou imortal - mas não era e lá ficou. Isto há
quase três quartos de século mas, há pouco tempo, tão pouco que lhe
escrevi IN MEMORIAM no Expresso, morreu quase tão velho quanto Bernard
Shaw mas sem ninguém estranhar isso (hoje, morrer com mais de noventa
anos é banal) o francês Claude Lanzmann (1925-2018), autor do filme de
dez horas «Shoah», monumento cinematográfico e ariete da condenação do
antissemitismo (e único amante de Simone de Beauvoir autorizado a viver
debaixo do mesmo teto que ela), várias décadas antes de morrer
declarara: Falhei a vida - J"ai raté ma vie - porque não nasci rico.
Sentimentos
assim são raramente expressos com essa clareza cirúrgica mas muita
gente os alberga, sobretudo em alturas em que o futuro vislumbrado
pareça ser menos agradável do que o presente; em que se pense que os
filhos vão ter pior vida do que os pais, como está a acontecer agora na
Europa e nos Estados Unidos da América (salvo entre aqueles que os
espanhois chamam los ricos-ricos) e não acontecia desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, décadas em que a gente, de um e do outro lado do
Atlântico, até já se esquecera de que tal poderia acontecer. E quando,
ao contrário do que se passa agora, cada um sabia ir ganhar mais para o
ano, como neste ano ganhara mais do que no ano passado; quando a minha
mulher a dias, sabendo que trocaria vantajosamente o seu Toyota em
segunda mão, tanto se lhe dava quanto se lhe desse que eu tivesse um ou
dois BMWs ou que banqueiros milionários fotografados em revistas a cores
coleccionassem Bentleys ou Ferraris. Tout allait pour le mieux dans le
meilleur des mondes possibles.
Chão que deu uvas e, entretanto,
tudo se complica: sem benevolência cúmplice do pobre para o rico, o fel
de tribunos enraivados enche as almas do povo que os aplaude. (Os Burke*
têm quase sempre razão mas os participantes quase nunca lha a dão a
tempo - L"on immole à l"être abstrait les êtres réels et l"on offre au
peuple en masse l"holocauste du peuple en détail observou Benjamin
Constant sobre o chamado Terror da Revolução Francesa, ninharia por
padrões contemporâneos mas marco de infâmia na história europeia). Tal
se passa agora nos Estados Unidos: a energia de Trump assegura
preferência e apoio inabaláveis de brancos pobres, que metem medo aos
parlamentares do Partido Republicano os quais por isso não se opoem a
medidas calamitosas, prometidas em campanha pelo Presidente. Por detrás
do espectáculo acumulam se dolos e prejuízos crescentes - materiais e
morais - para os Estados Unidos e riscos de mais incómodos, alguns
fatais, para toda a gente.
* Diplomata
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