09/08/2018

LUCREZIA REICHLIN

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Itália virou-se 
contra a Europa

Longe de ser um caso excepcional, Itália poderá, na verdade, ser um prenúncio daquilo que acontecerá em muitos outros países, especialmente após as eleições da UE.

Passaram cerca de dois meses desde que o populista Movimento Cinco Estrelas (M5S) e a Liga formaram um novo governo em Itália, e por isso é muito cedo para dizer como é que a coligação traduzirá a sua retórica de campanha em políticas concretas. Na verdade, as contradições internas da coligação podem limitar a sua acção legislativa, ou mesmo provocar a sua queda - possivelmente antes das eleições para o Parlamento Europeu em Maio de 2019.

Dito isto, não é cedo demais para antecipar o que é que a postura anti-europeia do governo italiano significará para a Europa. Para os líderes da União Europeia que assistem a partir de Bruxelas, a dinâmica política que a coligação M5S/Liga colocou em acção pode ser muito mais importante do que qualquer iniciativa política específica.

A coligação M5S/Liga é o primeiro caso de um governo abertamente anti-UE a chegar ao poder num dos Estados-membros fundadores do bloco. Embora o seu radicalismo seja, em parte, uma resposta ao desempenho desanimador da economia italiana nas últimas duas décadas, um tipo semelhante de política anti-sistema criou raízes em países europeus que tiveram um desempenho melhor. Longe de ser um caso excepcional, Itália poderá, na verdade, ser um prenúncio daquilo que acontecerá em muitos outros países, especialmente após as eleições da UE.

O novo governo italiano adoptou rapidamente uma linha dura na imigração. Matteo Salvini, o líder da Liga e actual ministro do Interior, criticou a UE por ter deixado Itália sozinha com o problema dos requerentes de asilo. A retórica de Salvini é muitas vezes racista e inflamatória, mas tem razão quando diz que a crise dos refugiados exige uma solução colectiva. O fracasso altamente visível da UE nesta questão jogou a favor dos seus críticos.

Até agora, o desafio de Itália à UE em relação à imigração forçou os Estados-membros "centrais", como a Alemanha, a começarem a considerar soluções negociadas para o problema. Mas uma abordagem cooperativa verdadeiramente viável ainda parece muito distante.

Isso significa que os governos que simpatizam com a posição de Salvini deverão continuar a seguir políticas unilaterais, possivelmente colocando em risco o sistema de Schengen em grande parte da UE. Destruir essa instituição fundamental da UE pode não ser o objectivo declarado de Salvini, mas a verdade é que está claramente a conduzir as coisas nessa direcção.

Ao mesmo tempo, na frente da política económica, o novo governo italiano introduziu o seu "decreto dignita" (lei da dignidade), que reverterá algumas das reformas do mercado de trabalho promulgadas pelo governo de centro-esquerda do antigo primeiro-ministro Matteo Renzi. Especificamente, a legislação tornará mais difícil para as empresas despedir trabalhadores com contrato sem termo, ou empregar trabalhadores com contratos temporários a longo prazo.

Uma análise técnica conduzida pelo Instituto Nacional de Segurança Social (INPS) prevê que a nova lei levará a uma redução geral no emprego e que isso afectará negativamente o orçamento nacional. Em resposta a essas descobertas, o governo ameaçou demitir o presidente do INPS.

O ataque do governo M5S/Liga à independência do INPS dá uma ideia do que está por vir. Já há um conflito mais amplo dentro da coligação sobre a forma de conciliar agendas de política económica de esquerda e de direita dentro das restrições das regras orçamentais da UE - que o actual ministro das Finanças, Giovanni Tria, diz querer defender. Esse conflito pode chegar ao auge se a coligação avançar com as suas propostas de implementar um rendimento de cidadania, uma reforma das pensões e corte de impostos.

Ainda que os objectivos imediatos do governo estejam centrados em assuntos internos, as suas políticas podem ter profundas implicações para a UE em geral. Como já vimos no caso da política dos refugiados, o governo deverá adoptar uma posição de confronto com a UE sempre que puder. Afinal, desafiar a UE cai bem para as bases eleitorais tanto do M5S como da Liga, e outros governos - especialmente os da Hungria e Polónia - já demonstraram a eficácia de fazer de Bruxelas um bode expiatório para os fracassos domésticos.

Qual é a conclusão da história? Por um lado, a atitude agressiva do governo italiano pode ser interpretada como uma táctica de negociação com a UE; por outro, pode ser uma estratégia política para as próximas eleições europeias. Tal como os partidos nacionalistas que estão a emergir noutros Estados-membros, o M5S/Liga pode estar a tentar empurrar a UE para uma federação mais frouxa na qual as prerrogativas de políticas chave são transferidas novamente para os governos nacionais.

Mas para os países da Zona Euro, esse resultado levaria a mais instabilidade. Na ausência de políticas orçamentais alinhadas e regras comuns, uma moeda comum simplesmente não é sustentável. Embora os líderes do M5S e da Liga não estejam a pedir uma saída da Zona Euro, e muito menos da UE, a sua agenda doméstica vai prejudicar as fundações do bloco.

A UE deve preparar-se. Estamos prestes a ver os danos que podem ser causados ??quando um grande Estado-Membro persegue um programa de antagonismo em relação à UE. Itália está a mostrar que, sem progressos em direcção a uma união cada vez mais estreita, uma desintegração silenciosa poderá estar próxima.

* Antiga directora de pesquisa do Banco Central Europeu, é professora de Economia na London Business School.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
01/08/18

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