28/08/2018

JOSÉ GAMEIRO

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A surfista

Conheci-a por puro acaso. Não me procurou profissionalmente. Não foi preciso conhecê-la muito para perceber que vivia muito bem consigo e com os seus próximos. Mas teve de lutar, mais com ela própria do que com os outros. O caminho que fez não foi fácil. Já um bocado para lá dos 60 anos, cabelo curto, grisalho — desde há muito que se recusa a pintá-lo —, conheci-a na praia, a sair do mar, prancha na mão.

Já um bocado para lá dos 60 anos, cabelo curto, grisalho — desde há muito que se recusa a pintá-lo —, conheci-a na praia, a sair do mar, prancha na mão.

Era difícil não olhar para ela, bonita, alta, com um sorriso simpático. Destacava-se facilmente no meio dos miúdos e menos miúdos que àquela hora estavam a entrar e a sair das ondas. Passados uns dias, meti conversa na esplanada.

“Desculpe o meu preconceito, nos tempos que correm não é muito correto, mas venho aqui há muito tempo e não me lembro de ver uma senhora da sua idade a fazer surf.”

Desatou a rir-se. “Até que enfim que alguém me diz alguma coisa. Sabe, muita gente olha para mim, mas nunca me tinham feito nenhuma pergunta.”

Devo ter cara de psiquiatra, começou a falar dela como se me conhecesse desde sempre.

“Trabalhei numa companhia de seguros toda a minha vida. Fiz o percurso do costume, tirei um curso, casei, tive filhos, já tenho um neto. Não tinha tempo para nada, sabe como é, a correr de casa para o trabalho. Tive um marido de quem gostei muito, morreu no ano passado, tenho muitas saudades dele. Quando fiquei viúva e, pouco tempo depois, me vi livre do trabalho, comecei a vir até aqui com o meu neto mais novo. Ele estava a aprender a fazer surf e eu ficava encantada a ver os seus progressos nas ondas. Até comecei a falar de offshore, inshore, swelling. O meu neto, cheio de vergonha, dizia: ‘Ó avó, não tem idade para dizer essas coisas.’ Hesitei muito, tinha vergonha, mas enchi-me de coragem e fui falar com o professor. Claro que podia ter aulas, muito educadamente sugeriu que talvez fosse melhor serem individuais. Demorei umas semanas a conseguir pôr-me em pé na prancha, hoje já faço umas ondas, mas sobretudo sinto-me muito bem aqui. Deixei de viver em piloto automático, sempre a fazer todos os dias a mesma coisa. Claro que por vezes me perguntava se o que tinha era uma vida, mas gosto muito da minha família e dos meus amigos e ia vivendo...”

Passaram uns dias, voltei lá. Estava sentada na esplanada a conversar com um homem, cabelo e olhos claros. Chamou-me, perguntou-me se podia falar em inglês. Sentei-me, apresentou-me o amigo.

“Também o conheci aqui, é gestor de fundos financeiros, mas está farto. Começámos a falar de seguros de capitalização e agora somos namorados. Vamos montar um bar de praia. Só me falta a coragem para conversar com os meus filhos, já deve ter percebido que ele é muito mais novo do que eu...”

Já tinha percebido, mas, antes do alemão, eu também tinha percebido que o charme dela não tem idade. O resto são pormenores. As rugas e o cabelo grisalho desaparecem com o seu olhar doce.

Despediu-se de mim. Iam fazer uma viagem de caravana. Quase ao ouvido, disse-me em português:
“Nem imagina a pena que tenho em não viver isto com o meu marido”.

IN "EXPRESSO"
16/08/18

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