26/06/2018

CATARINA MARCELINO

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As barracas 
da nossa vergonha

A igualdade de oportunidades só é possível se as condições básicas mínimas estiverem asseguradas. E pessoas a viver nestas condições não têm a possibilidade de poder, se quer, pensar em igualdade ou em oportunidades. Pensar em percurso escolar, pensar no futuro

Nos últimos meses tenho feito várias visitas a “acampamentos” de comunidades ciganas. São bairros de barracas, degradados, muitas vezes em campos baldios, onde as histórias de cobras e ratazanas são uma trivialidade. Onde não existe água ou qualquer saneamento básico.

As crianças não têm onde tomar banho, água quente só aquecida no fogão e no inverno fazem-se braseiros para aquecer o espaço ínfimo onde dormem, comem e vivem, entre correntes de ar e humidade. Muitas vezes no inverno, durante a noite, é normal acordar com a chuva a cair na cama.

Também posso testemunhar a organização destes espaços exíguos e escuros. Os cobertores bem dobrados naquilo a que as pessoas ciganas chamam “fato armado”, os tachos e panelas a brilhar de tão bem ariados, as loiças expostas em escaparetes e tudo muito limpo e arrumado.

No meio de tudo isto há muitas crianças, que trazem alegria e a vivacidade a estes locais, mas que nos confrontam ainda mais com a falta de condições. Ainda esta semana numa cidade do interior, num dia de muito calor em que os termómetros atingiam perto dos 40 graus, vi uma criança com varicela em condições insalubres.

A igualdade de oportunidades só é possível se as condições básicas mínimas estiverem asseguradas. E pessoas a viver nestas condições não têm a possibilidade de poder, se quer, pensar em igualdade ou em oportunidades. Pensar em percurso escolar, pensar no futuro.

Esta realidade, em particular no interior do país, não é percetível e visível para a maioria de nós. Porque está escondida, arredada das centralidades urbanas, arredada dos holofotes mediáticos. Por vezes, de quando em vez, esta realidade chega aos media, como foi o caso este inverno do serro do bruxo em Faro, em que as barracas voaram com o tornado.

O IHRU- Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana realizou um estudo de caracterização das condições de habitação das comunidades ciganas residentes em Portugal que conclui que 32% das famílias ciganas residem em habitação não clássica (barracas ou similares) e que, entre o universo total, famílias ciganas e não ciganas, as famílias ciganas correspondem a cerca de 50%. Tendo em conta que se estima que as pessoas de etnia cigana corresponderão a cerca de 0,4% do total da população portuguesa, significa que há uma elevadíssima percentagem de pessoas ciganas em barracas o que enquadra um contexto de discriminação étnico-racial.

Com o PER – Programa Especial de Realojamento, lançado no início da década de 90 do século passado, que tanto contribuiu para a erradicação de barracas nas áreas metropolitanas, com tradução no número de famílias das comunidades ciganas a viver em habitação social que, apesar de corresponder apenas a 3% de todas as famílias que vivem neste tipo de habitação, dentro da comunidade corresponde a 48%, o problema foi mitigado.

Contudo, no interior do país e em zonas do litoral que não foram abrangidas pelo programa, o problema persiste até hoje, ficando os municípios com a responsabilidade de o resolver. É evidente que não é possível, mesmo quando esta questão é prioridade política para os autarcas, e tenho testemunhado o empenho de vários, porque o problema é demasiado complexo, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista territorial, quer do ponto de vista financeiro.

Acresce ainda a dificuldade das pessoas ciganas em acederem ao mercado de arrendamento. Mesmo que existam as condições financeiras para alugar uma casa a verdade é que, por serem ciganas, há uma desconfiança da comunidade maioritária que impede o arrendamento. Talvez por esta razão, no estudo do IHRU, o numero de famílias de etnia cigana a viver fora da habitação social e da habitação não clássica, é muito baixo.

A nova geração de políticas de habitação tem muitas virtualidades, porque pela primeira vez tem o foco na reabilitação e no arrendamento, mas não serve para solucionar este problema grave porque o apoio que dá a fundo perdido para construção não se compadece com o investimento municipal necessário para resolver o problema.

Por todas estas razões é urgente olhar para esta situação dentro da sua especificidade. A situação habitacional das comunidades ciganas é particular e deve ser tratada como tal. É preciso criar uma estratégia integrada, que passe por mecanismos intermédios de realojamento e pela posterior integração destas famílias em espaços habitacionais diversificados, promovendo a inclusão, criando as condições para que seja possível acabar com esta miséria que nos deve envergonhar a todos.

*Nasceu no Montijo. Licenciou-se em Antropologia pelo ISCTE. Construiu o seu percurso de ativismo cívico e político através de experiências de voluntariado na AMI, Comunidade Vida e Paz, na Liga Portuguesa Contra a Sida e como dirigente das Mulheres Socialistas. Trabalhou em Câmaras Municipais, foi Adjunta do Secretário de Estado da Segurança Social e Presidente da CITE. Foi Secretária de Estado para a Cidadania e para a Igualdade e é Deputada à Assembleia da República pelo Partido Socialista.

IN "VISÃO"
23/06/18

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