06/06/2018

CARLA ISIDORO

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O homem do futuro

Até há pouco tempo a masculinidade era sinónimo de poder, dominação e sucesso, e as marcas ajudaram a criar uma ideia estereotipada de homem que hoje está visivelmente em decadência, a ponto de termos a palavra ‘tóxico’ associada a masculino e masculinidade. Vamos perceber o que está a mudar

No ano passado o movimento feminista #metoo trouxe à discussão pública, a uma escala global, as situações de abuso sexual no local de trabalho e o direito da mulher a defender-se e poder acusar os abusadores responsabilizando-os pelos seus atos. A repercussão do movimento teve impacto à escala global e foi fulcral para fazer cair segredos e máscaras que têm prejudicado a ascensão profissional das mulheres. Mas, na minha opinião, houve outro impacto muitíssimo pertinente que foi o de trazer à baila, pela primeira vez na história da humanidade, a discussão do desempoderamento masculino que hoje vemos ser transversal às sociedades ocidentais (ou que pelo menos nestas é mais notório). Até agora não havia coragem de falar publicamente nos problemas de identidade e auto-confiança que minam os rapazes e os homens pelo mundo fora, e que se manifestam em diversas formas agressão em ambientes díspares como a escola, a família, o trabalho, etc , seja cometendo suicídio, na violência contra mulheres, no abuso de drogas, na adição à pornografia, ou noutras formas de autodestruição, destruição e alheamento da realidade. Nos EUA, os recorrentes assassinatos em massa nas escolas levados a cabo por rapazes levaram finalmente a que o problema da identidade masculina esteja a ser discutida na sociedade. Este problema é somente uma das franjas de um problema maior e complexo chamado machismo e que tem destruído a saúde do tecido social e humano das sociedades ao longo dos séculos, a americana e qualquer outra.

Como é que os homens querem ver-se representados no futuro? O que se pretende dos homens da atualidade e daqueles que estão agora a nascer?

A perceção de masculinidade está quebrada e estilhaçada. Os homens estão confusos sobre o que significa ser-se homem nos dias de hoje, e com poucas referências para saberem ensinar os rapazes a serem corajosos e assertivos sem terem medo ou vergonha de confundir competitividade com agressão ou emoções com feminilidade, nem encontram modelos masculinos saudáveis que sirvam de orientação e exemplo. Por outro lado, vemos sucessivos escândalos de corrupção e crime que deitam por terra a credibilidade de grandes corporações, instituições religiosas e governos, com figuras masculinas a encabeçar estes casos ou governos que são maus exemplos de poder. O paradigma masculino de poder e domínio está a cair, e estes escândalos são a face visível desta fase de decadência.

Se pensarmos no problema a partir do ponto de vista do consumo, temos muito a cobrar às marcas e à forma como estas têm explorado e vendido a imagem do masculino ao longo dos tempos, assim como do feminino. E como o machismo e suas consequências não têm solução imediata de indivíduo a indivíduo, as grandes corporações estão a ser chamadas para a mudança de mentalidades e comportamentos do coletivo, à escala global.

Daqui a alguns anos, quando olharmos para trás, veremos o ano de 2017 e provavelmente o de 2018 e 2019 como marcos históricos para uma tomada de consciência e mudança de comportamentos relativamente à identidade de género e sua livre expressão nas sociedades. Uma nova cultura está ser moldada agora. Alinhadas e em consciência com o movimento feminista, os Millennials estão a transformar a maneira como as relações humanas e sociais se manifestam, e as marcas começam a reformular e a considerar a forma como a identidade das mulheres e das pessoas LGBTI tem sido usada para fins comerciais. E quanto aos homens, como é que as marcas vão refazer a imagem do masculino sem repetir erros do passado nem perpetuar estereótipos de agressividade, abuso e alheamento emocional?

O feminismo tem mais de cem anos de história, questionamento e discussão. As mulheres têm aprendido a recriar-se, apesar dos recuos e entraves socio-políticos impostos ao longo das décadas, emancipando-se. Aos homens não era pedida emancipação alguma porque supostamente eram soberanos, autónomos e independentes do poder feminino para alcançarem poder, bem-estar e sucesso. Contudo, isto não passava de uma falácia que finalmente veio à luz. A morte dos mitos e falácias é positiva, mas enquanto não se enterra o passado reconstruindo um novo futuro é possível que andemos à deriva e sem orientação. E como temos visto ao longo da história, nada é mais perigoso do que pessoas a sentirem-se incapacitadas, sem propósito de vida nem autonomia. Quanto a isto, o comportamento dos rapazes em particular tem mostrado o quanto a sensação de falta de poder pessoal fá-los sentir fracos, frágeis e alheados comparativamente às raparigas. Numa crónica escrita pelo americano Michael Ian Black para o New York Times intitulada “The boys are not alright”, (Os rapazes não estão bem) o comediante e ator pede ajuda à sociedade para que se discuta e levante o véu deste problema. Preocupado com o desenvolvimento saudável do filho adolescente, Michael Black pensa alto enquanto homem que está visivelmente preocupado com o que vê acontecer à sua volta. As raparigas empoderaram-se e assumiram papeis de protagonismo na sociedade, e este ganho de valor do feminino deixou os rapazes (e os homens) perdidos, sem referências nem orientação. Os pais, homens, têm dificuldade em lidar com a questão porque nunca tiveram de fazê-lo antes, e porque nunca antes tinham sido questionados socialmente. O artigo de Michael Black parece-me revelador de que não faltam homens desejosos de desintoxicar uma certa masculinidade, recriando-a ou resgatando os valores intrínsecos saudáveis que pertencem ao masculino e que ficaram perdidos na história humana da ganância, do poder, das guerras e da competitividade cega que tem marcado a história. Esse resgate deve ser feito e é justamente devido aos rapazes e às gerações que virão.

Quanto às marcas e ao consumo, há sinais no mercado de que mudanças positivas estão a acontecer e que os homens estão a tomar a dianteira do discurso e da prática do masculino saudável. Segundo a agência LSN Global, os babyboomers - homens algures entre os 60 e 70 anos –começam a procurar produtos e serviços para cuidarem do seu aspeto e da saúde; a Soft Masculinity começa a revelar-se na Ásia e no Ocidente através de representações que se afastam das ideias de agressividade e dominação tipicamente relacionadas ao masculino; e a Black Masculinity ganha expressão com homens negros a questionarem a ideia de masculinidade negra, e a ausência de modelos de parentalidade saudáveis, observando as consequências disto no comportamento e desenvolvimento saudáveis dos rapazes negros. Todas as mudanças em curso parecem ser sinais claros de que o masculino está em transformação positiva, deixando antever que a reconstrução da identidade masculina marcará os negócios, as estruturas profissionais, educação, o consumo, etc.

O mercado está a mudar, a consciência dos jovens relativamente aos comportamentos de agressividade e violência verifica-se em tendências como o gender neutrality, e o mundo masculino começa a perceber que tem dado mensagens perversas e erradas aos rapazes relativamente ao que significa ser-se homem. Mas as máscaras estão a cair, o lado negro do patriarcado está finalmente a vir à tona, e o início da mudança de mentalidades acontece diante dos nossos olhos. Parece que o momento dos homens poderem desabafar e chorar, sem vergonha, finalmente chegou. É merecido. Deixo como sugestão, e para continuação desta para reflexão, o documentário «The Mask You Live In», com inúmeros testemunhos de rapazes e adultos que falam abertamente das consequências de serem educados e viverem num estereótipo de masculino equivocado e profundamente limitador.

IN "VISÃO"
25/05/18

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