15/06/2018

ANTÓNIO LOBO ANTUNES

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Júlio Pomar

Gostei do seu sorriso, da ironia terna dos olhos, ele que podia ser implacável, que era implacável. Rimo-nos imenso. O Zé calado, atento, a verificar a temperatura da nossa relação, a sossegar aos poucos, a sossegar de todo, visto que a corrente passava

Acabei de saber que morreu o Júlio. Ponto. Ainda estou meio zonzo, só daqui a umas horas ou isso me vai começar a doer. Assim ao princípio é uma espécie de tontura, uma espécie de vertigem. Assim ao princípio não acredito. Somos, éramos muito amigos. 
Há bastantes anos. Escreveu um livro inteiro de poesia para mim. Escrevi sobre ele. Foi 
o Zé, José Cardoso Pires, um irmão antigo 
e muito querido, que nos apresentou. Ainda estou meio zonzo, só daqui a umas horas ou isso me vai começar a doer. Pediu ao Zé que me pedisse para escrever um catálogo para uma exposição dele. Eram amigos um do outro desde a adolescência, o Zé andava no Camões, o Júlio na António Arroio. O Zé andava no Camões, o Júlio na António Arroio. O Zé andava no Camões, o Júlio na António Arroio. Como gostava muito dele disse que sim. Fomos os dois 
a sua casa. Eu disse para passarmos, de caminho, pelo Campo de Santana, ou seja pela estátua do doutor Sousa Martins, achei que o Júlio ia gostar se lhe oferecessemos um daqueles bustos de plástico pequenos que vendem ali ao pé, juntamente com círios e relíquias, pernas, braços, fígados, miniaturas lindamente horríveis. Lá estava o doutor Sousa Martins rodeado de velas e de crentes. Comprámos o busto e o Zé, a fim de lhe estudar a resistência, atirou-o, com toda a força, ao chão. Saltou que foi uma beleza. Aí os crentes saltaram também mas para cima de nós, de maneira que tivemos de pirar-nos a trote para o carro. Graças ao doutor Sousa Martins aprendi o que é a perseguição religiosa, a sua violência, os seus perigos. E lá fomos, quase mártires, para a Rua do Vale, que eu não conhecia. A casa, o atelier por cima, pintura, pintura, pintura. Um extraordinário desenho de Matisse feito, como dizia o Júlio, mine de rien. Fiquei parvo diante daquilo. Ainda estou meio zonzo, ainda não começou a doer. Um pequeno Bonnard. Outros artistas. Mas Matisse enche-me as medidas. Lembro-me de ver quadros dele em Nova Iorque, no Guguênaime. Depois quadros de bastantes outros: não estou aqui para falar de pintura, estou aqui para falar de um irmão. E, como antes com o Zé, a nossa amizade foi instantânea e absoluta. Gostei do seu sorriso, da ironia terna dos olhos, ele que podia ser implacável, que era implacável. Rimo-nos imenso. O Zé calado, atento, a verificar a temperatura da nossa relação, a sossegar aos poucos, a sossegar de todo, visto que a corrente passava. O Zé achava-me difícil, sempre julguei que não mas não sei, se calhar sou. O Zé achava o Júlio difícil também, mas a nossa camaradagem, para seu alívio, funcionou de imediato. E fomos lá cima, ao atelier, cheirar o material da exposição. Eu ia de trabalho em trabalho e os dois badamecos atrás, comigo a senti-los olharem para mim. O que vi entrou-me pelas pupilas dentro em explosões sucessivas. Voltei-me para eles, disse ao Júlio que escrevia o catálogo. O Júlio amarrotou-se todo no seu sorriso de menino, o Zé, que não era de tacha arreganhada fácil, continuou a olhar para mim. Espalmei-me no seu ombro, ele rodeou-me 
a cintura com o braço e rosnou

– Bom.
Foi assim. Só daqui a umas horas me vai começar a doer. A partir dessa noite o nosso namoro foi-se estreitando sempre. A partir dessa noite eu às vezes pegava numa peça, dizia

– Vou levar isto

e o Júlio respondia

– Leva.

A partir dessa noite jantares, jantares, jantares, telefonemas, conversas. Lembro-me de uma ocasião termos ido comer ao Bairro Alto, só os dois. Passada meia hora já andavam por lá fotógrafos a fazerem clic clic para a gente, como se fossemos midinettes ou actores de novelas. Eu rosnei

– Foda-se

O Júlio ria-se. O riso de miúdo daquele homem. E gostávamos 
à brava um do outro. Depois tive 
o mesmo cancro que ele tinha tido. Disse-me só

– Aguenta-te
e o

– Aguenta-te

ajudou-me imenso. Lá me aguentei. Depois isto tudo foi continuando, crescendo. Fez 
o meu retrato. Ofereceu-me um retrato dele. Ofereceu-me imensa coisa. Levei o diretor do Thyssen a ver-lhe os quadros e, que engraçado, ele parecia um ganapo nervoso. Aquela barba branca, aquele cabelo ordenadamente desordenado. A morte, para mim horrível, do Zé, para ele horrível, do Zé. Continuámos. Às vezes tocávamo-nos ao de leve. Ao encontrarmo
-nos beijávamo-nos. Tinha pés rupestres, os óculos logo acima da barbicha de fauno. Apareceu nalguns prémios que me deram. Até em Vila Real estivemos juntos. 
E cada encontro foi sempre uma alegria. Só me aborrecia, ao voltar para casa, ter de subir a Rua do Vale toda. E a comida era óptima. E nunca nos aborrecemos. Júlio. Júlio Júlio Júlio. Um minuto depois de saber o que aconteceu agora, ou seja aquilo a que chamarão talvez 
a tua morte, comecei a escrever isto. De modo que ainda estou meio zonzo, só daqui a umas horas ou assim me vai começar a doer. Ou talvez não doa. Pode ser que 
a Tereza telefone como de costume

– António o Júlio quer falar contigo

e, logo a seguir, a voz dele na frase habitual

– Como estás tu?

não: logo a seguir a voz dele, noutra frase habitual:

– Aguenta-te.

IN "VISÃO"
07/06/18

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