26/05/2018

ANDRÉ BARATA

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A eutanásia e 
a nossa integridade moral

Falhar-nos a autonomia no momento do fim da vida é trair-nos a vida inteira. Se esta escolha é tão central e absolutamente inviolável para uns não é razoável que o deixasse de o ser para outros.

Na próxima terça-feira, dia 29, vão a plenário da Assembleia da República, quatro projectos de lei em torno da despenalização da eutanásia ou, dito com mais precisão, da despenalização da antecipação voluntária da morte em circunstâncias muito especiais que calam fundo na sociedade portuguesa, a saber, circunstâncias de sofrimento insuportável provocado por doença fatal incurável ou lesão irreversível.

É isto que está em causa, isto que quase todos nós, a partir de uma certa idade, muitas vezes em silêncio, vamos conhecendo de experiência própria através do sofrimento de familiares ou de amigos íntimos. Antes de argumentos e contra-argumentos, é este fundo de experiências vividas que cada vez mais se inscreve numa sociedade em que vamos vendo viver mais tempo, com tratamentos médicos a garantir maior longevidade média contra todas as doenças.

No entanto, e paradoxalmente, viver mais tempo pode não ser viver sem sofrimento, e mesmo se cuidados paliativos podem tratar a dor, o sofrimento tem dimensões além da dor, que se ligam muito mais ao sentido e ao sentir da vida de cada um do que à vida biológica anónima. Não podemos encarar como normal e natural o prolongamento das nossas vidas porque a ciência assim o permite e não encarar como igualmente normal e natural que nos perguntemos até onde queremos prolongar as nossas vidas, e em que condições aceitamos prolongá-las.

Posto isto, certamente os argumentos abstractos continuam a ser decisivos.

Primeiro, o da autonomia. Não respeitaremos a dignidade das nossas vidas e as dos outros enquanto não reconhecermos a autonomia de quem as vive, ou seja, a autonomia, dentro de limites socialmente compreensíveis, de cada um se autodeterminar, de forma madura, em pleno uso das suas capacidades intelectuais, os aspectos mais importante da sua vida, sem tutelas, nem paternalismos, ou outras formas de menorização das consciências.

Segundo, a autonomia da vida joga-se muito sensivelmente na autonomia sobre como ela acaba. Entre as decisões mais importantes de uma vida, conta-se a decisão sobre como não se quer que a vida termine. Para alguns, muitos, é certo que não se quer que a vida termine por recurso à eutanásia.

Por motivos religiosos por exemplo. Mas, e estão tão no seu direito como todos os outros que não querem que as suas vidas terminem de outras formas, por exemplo num sofrimento insuportável e incurável.

Não se poder ter uma palavra sobre esta escolha — como não se quer que a vida termine — seria uma restrição do direito pleno à vida. Não no sentido frívolo de um direito a fazer dela o que se quiser, como uma posse de que nos pudéssemos desfazer, mas no sentido de uma vida que se deve poder ser por inteiro, o que inclui por inteiro o seu fim. Falhar-nos a autonomia no momento do fim da vida é trair-nos a vida inteira. Se esta escolha é tão central e absolutamente inviolável para uns não é razoável que o deixasse de o ser para outros.

Agora que os projectos lei chegam a discussão parlamentar, há uma responsabilidade de todas as partes contribuírem para encontrar uma solução que consiga acomodar o princípio da autonomia, uma solução que, no entanto, não falhe nenhuma das condicionantes que têm de ser atendidas com toda a seriedade. Uma legislação deve ser aprovada, mas a que for aprovada deve garantir que o diagnóstico de lesão definitiva ou doença incurável e fatal é um juízo médico sério e não simplesmente do paciente.

Além disso, o reconhecimento de sofrimento duradouro e insuportável deve ser um juízo que não deve ser estabelecido sem uma apreciação concreta do caso singular, não podendo resumir-se à enunciação de um diagnóstico médico. Não menos importante, a assistência médica deve garantir que a formação da vontade da pessoa que faz o pedido de antecipação da morte não está a ser condicionada ou pressionada por factores externos.

Devem distinguir-se e tipificar três actos de assistência médica com valorações éticas distintas, mas também estabelecer entre eles relações lógicas importantes.

Primeiro, a eutanásia passiva, através da acção médica de interrupção de um tratamento, justifica-se contra a distanásia, que prolonga artificial e inaceitavelmente a vida através do uso desproporcional e obstinado de  tratamentos. Mas, por seu turno, a eutanásia activa deve ser despenalizada em circunstâncias idênticas às que tornariam permissível um acto de eutanásia passiva, mas em que não existe um tratamento que possa ser interrompido.

Naturalmente, a perspectiva dos médicos (que podem sempre fazer valer-se da objecção de consciência) passa a estar muito mais em causa, mas é importante não perder de vista que da perspectiva do paciente nada mais está em causa do que a existência ou inexistência de um tratamento que pudesse ser interrompido, facto em si mesmo moralmente neutro e que, por isso, origina arbitrariedade caso seja moralmente relevado. Ou seja, a eutanásia activa só deve ser aceitável se não for possível um acto de eutanásia passiva, mas encontradas essas circunstâncias não se devem constituir novas objecções éticas.

Finalmente, o suicídio medicamente assistido deve ser apenas despenalizado para a parte médica em circunstâncias idênticas às que devem tornar o acto de  eutanásia não punível. E um procedimento de eutanásia, activa ou passiva, só deve ser aceitável se o suicídio assistido não puder ter lugar. Tanto quanto possível a autonomia deve solidarizar uma vontade formada com a capacidade de a efectivar, não a contornando.

Frequentes vezes vem ao debate público o argumento de que a Constituição é incompatível com a despenalização da eutanásia. A meu ver sem razão. Diz o Art.º 24 que a vida é inviolável e o seguinte que a integridade moral e física das pessoas também o é. Não só a física, mas também a moral, pois são ambas que fazem a integridade de uma pessoa. Não são muitas mais as evocações na Constituição da ideia de inviolabilidade. Repetem-se apenas com a domicílio e a correspondência (Art.º 34) e com a liberdade de consciência, de religião e de culto (Art.º 41).

“Inviolabilidade” é, pois, uma palavra usada com uma gravidade constitucional inquestionável e sempre relacionada com a garantia da protecção da autonomia da pessoa. À luz disto, não violar a vida é um imperativo constitucional que não se pode dispor a ir ao ponto de violar a integridade moral da vida humana. Ora, são precisamente circunstâncias de sofrimento imposto atentatórias da integridade moral da vida humana, e nenhumas outras, aquilo que estes projectos de lei que irão a plenário para a semana querem, com justiça, repudiar.

*Filósofo, professor na Universidade da Beira Interior

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
24/05/18

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