30/03/2018

REGINA QUEIROZ

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Afro-descendentes 
(portugueses e imigrantes): 
distinguir para unir

As vantagens decorrentes da nacionalidade não incluem o reconhecimento da identidade política dos afro-descendentes como cidadãos portugueses.

No contexto do combate ao racismo institucional, pessoal e interiorizado, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou a Década Internacional dos Afro-descendentes (2015-2024). Conquanto afro-descendente se refira grosso modo a qualquer cidadão proveniente de África e no caso português possa incluir muitas categorias de pessoas (e.g. retornados), dos objetivos da Década decorre que afro-descendente é um eufemismo de cidadão negro ou mestiço que viva em qualquer parte do mundo. Apesar da resolução (68/237) da ONU associar privilegiadamente afro-descendente aos cidadãos nacionais dos diferentes Estados mundiais, a resolução também se refere aos migrantes. Como categoria política, em Portugal afro-descendente refere-se às pessoas negras e mestiças com nacionalidade portuguesa, assim como aos migrantes provenientes de África, sobretudo das ex-colónias portuguesas (e.g. Angola, Guiné-Bissau, Cabo-Verde, Moçambique).

Mau grado a aparente clareza conceptual, em Portugal o racismo institucional tem implicado a compreensão dos afro-descendentes portugueses como imigrantes e a preservação do direito de sangue (jus sanguinis) como critério de atribuição da nacionalidade. Neste último caso, há inúmeros afro-descendentes imigrantes cujo direito à nacionalidade tem sido coartado.

Embora aqueles factos possam ter a mesma causa — o racismo embebido nas instituições portuguesas —, é conveniente não confundir, como faz o Estado português, duas realidades jurídico-políticas distintas: (a) a dos afro-descendentes portugueses, tratados como imigrantes, e (b) a dos afro--descendentes imigrantes que lutam pela alteração da lei da nacionalidade.

Apesar de em ambos os casos serem racialmente discriminados, uma coisa é a situação jurídico-política dos afro-descendentes portugueses, cujos direitos e deveres como cidadãos nacionais são frequentemente sonegados; outra coisa é a situação de afro-descendente imigrante cujo direito à nacionalidade portuguesa tem sido severamente restringido. Com efeito, por um lado, o facto de os afro-descendentes imigrantes adquirirem a nacionalidade portuguesa não os livra de continuarem a ser tratados como estrangeiros, tal como acontece atualmente com os afro-descendentes portugueses.

As vantagens decorrentes da nacionalidade não incluem o reconhecimento da identidade política dos afro-descendentes como cidadãos portugueses. Por outro lado, o facto de o Estado português confundir os dois estatutos, tratando os afro-descendentes portugueses como imigrantes, não justifica que no diálogo com os representantes do Estado português os afro-descendentes portugueses consintam em ser tratados na base daquela confusão. Tanto mais que esta remete em última instância para a premissa política de que os afro-descendentes não podem ser portugueses.

Por exemplo, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, referiu-se apenas aos imigrantes quando se pronunciou sobre o relatório do Comité Europeu contra a Tortura relativo à discriminação racial nas prisões, como se não houvesse afro-descendentes portugueses nas prisões. Embora a Constituição portuguesa não permita a identificação dos portugueses afro-descendentes enquanto grupo racialmente discriminado, omitir que a violência policial baseada na discriminação racial também incide sobre afro-descendentes portugueses implica que a intenção de eliminar aquela violência não afeta a representação política dos afro-descendentes como estrangeiros (portugueses imigrantes e imigrantes). Doravante o Estado português poderá reportar que os imigrantes não são vítimas de violência policial, mesmo que os afro--descendentes portugueses continuem a ser vistos como imigrantes e a lei da nacionalidade, em vez de baseada no jus soli, continue alicerçada no jus sanguinis.

Por isso, se a discriminação racial explica por que razão os afro-descendentes imigrantes dificilmente adquirem a nacionalidade portuguesa, e os afro-descendentes portugueses são tratados como imigrantes, a não consideração da diferença jurídico-política no combate àquela discriminação mimetiza (e corrobora) a confusão institucionalizada do afro-descendente português-imigrante. Este mimetismo tem, todavia, três efeitos perversos.

Em primeiro lugar, opõe afro-descendentes (portugueses e imigrantes), de tal maneira que os afro-descendentes portugueses, com o direito e o dever de contribuírem para suprimir a discriminação de que são alvo, podem ser vistos como insensíveis aos problemas sociais, jurídicos e políticos dos afro-descendentes imigrantes. E, inversamente, os afro-descendentes portugueses podem considerar que os afro-descendentes imigrantes bloqueiam, ainda que involuntariamente, a procura de soluções para os problemas específicos dos primeiros. Com efeito, enquanto imigrantes não aceitam, e com razão, colaborar na procura de soluções para os problemas de uma classe à qual não pertencem, a dos afro--descendentes portugueses.

Em segundo lugar, implica a ausência de fins claros no diálogo entre os representantes do Estado português e os afro-descendentes, tornando-o completamente improdutivo. Sem qualquer ordem sobrepõem-se argumentos sobre a lei da nacionalidade, relativa aos afro-descendentes imigrantes, aos argumentos sobre a falta de reconhecimento dos direitos inerentes ao usufruto da nacionalidade portuguesa, relativa aos afro-descendentes portugueses.

Em terceiro lugar, mantém o statu quo, i.e. o atual critério para a atribuição da nacionalidade e a menoridade política e humana dos afro-descendentes portugueses. Tratados como imigrantes, sem voz própria nos processos de tomada de decisão política e pública a nível nacional, o debate e combate contra a sua discriminação racial continuam a ser travados nas instituições políticas nacionais (e.g. Parlamento) pelos seus (bem-intencionados) tutores e tutoras.

Não ignoramos que a distinção entre os afro-descendentes portugueses e imigrantes é irrelevante do ponto de vista ético. Em ambos os casos há pessoas que são negativamente discriminadas na base de um critério inclassificável. Também não ignoramos os debates quer sobre a pertinência da distinção jurídico-política entre nacionais e imigrantes, quer sobre o critério da atribuição da cidadania. No primeiro caso, numa sociedade cosmopolita, tal como Sócrates já sustentava no século V a.C., “não somos atenienses, nem gregos, mas sim cidadãos do mundo”. No segundo caso, os direitos de cidadania podem ser independentes da nacionalidade. Conquanto se possa questionar a fonte da identidade política, esta ainda depende da nacionalidade. Por isso, os afro-descendentes imigrantes lutam pela alteração da lei da nacionalidade e a nacionalidade é um direito humano universal — convém não esquecer as consequências políticas, jurídicas e éticas para os judeus e ciganos da privação da nacionalidade alemã no III Reich.

De acordo com essas premissas, o diálogo entre os afro-descendentes (como particulares ou membros de organizações da sociedade civil) e o Estado português deveria ser regulado pela diferença jurídico-política entre afro-descendentes portugueses e imigrantes, doravante transformada em critério de determinação das condições para aquele diálogo. Por exemplo, nesse diálogo os problemas dos afro-descendentes portugueses e imigrantes deveriam ser tratados em reuniões separadas. Similarmente, quando se discutem os problemas dos afro-descendentes portugueses, tratados como imigrantes, o diálogo não deveria ser mediado pelo alto-comissário das Migrações, nem deveria realizar-se em instituições políticas para imigrantes (e.g. o Centro Nacional de Apoio à Imigração, CNAI). Tal não significa que se houver um consenso entre os representantes do Estado português e os afro-descendentes portugueses o alto-comissário não possa estar presente como observador. Em contrapartida, se se discutem os problemas dos afro-descendentes imigrantes, a presença do alto-comissário das Migrações é imprescindível. Tal não significa também que os afro-descendentes portugueses sejam excluídos dessa discussão.

Em suma, admitindo que o Estado português está fortemente empenhado em concretizar o principal objetivo da Década Internacional dos Afro-descendentes — o combate contra a discriminação racial —, preservar ou eliminar a confusão jurídica e política entre afro-descendentes portugueses e imigrantes é um critério de avaliação daquele empenho.

IN PÚBLICO"
28/03/18


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