25/02/2018

GONÇALO VENÂNCIO

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 Da Igreja Universal da 
Neutralidade de Género

Se Neil Armstrong pisasse a lua hoje, ele nunca podia ter dito o que disse. «Um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade». Oh… seria imediatamente alvo de censura pela patrulha do politicamente correto. A frase não é inclusiva e não reflete a neutralidade de género. Ridículo? Não. É assunto sério.

Há dias no Canadá, o primeiro-ministro Justin Trudeau corrigiu uma jovem aconselhando-a a não usar a palavra humanidade. «We like to say ‘peoplekind’, not ‘humankind’, because it’s more inclusive» - a fidelidade ao original é importante para perceber a profundidade do pensamento justiniano. Na cruzada contra a segregação de género e opressão idiomática da língua cantada por Céline Dion, o mesmo Trudeau patrocinou a alteração do hino nacional: a nova versão, assética, apaga a linha «em todos os seus filhos» e troca-a por «em todos nós». 

A reboque de uma corrente ideológica de seriedade duvidosa, a luta indispensável pela igualdade de direitos e pela liberdade das minorias foi resgatada por um grupo de fanáticos que sonham com a imposição de um novo falar. Uma volta rápida pelo ocidente mostra como línguas que evoluíram organicamente ao longo de séculos estão a ser manipuladas pela engenharia idiomática, com a complacência de poderes políticos reféns dos minoritários monopólios da indignação. 

Em Londres, a autoridade de transportes achou que há quem se ofenda com a sua secular saudação aos passageiros. O educado «bom dia senhoras e senhores» foi trocado por um muito neutro e muito na moda «olá a todos».

Do outro lado do Canal da Mancha, o movimento ‘Écriture Inclusive’, na saudosa esteira revolucionária, promete guilhotinar o pendor «machista» e «falocêntrico» da língua francesa e reivindica a adoção do «género neutro». A Igreja da Suécia decretou a neutralidade de todas as referências de género nas homilias e em alguns textos sagrados Deus já não é ‘Pai’.

Voltando ao Canadá, o poder político manipulou a língua criando pronomes alternativos, ditos transgénero - them, zir/hir. E, pior do que isso, consagrou em letra de lei que a não conformidade dos cidadãos a esta nova gramática neutral configura discurso de ódio.

Parece que há muita gente que se ofende com o facto de ‘ele’ e ‘ela’ verbalizarem aquilo a que a ciência confirma como «traços biológicos objetivos binários». Mas quem é que mede o nível de ofensa que é estritamente individual e altamente subjetivo: grupos de pressão? Parlamentos? Governos? Correntes ideológicas? É papel de um governo legislar com base em perceções individuais ou grupais e impô-las à sociedade?

Quando se dá ao sentimento de ofensa o caráter de Lei, as sociedades têm um problema. Mas quando essa mesma lei enfia no saco dos delitos de ódio a manifestação de ideias ou opiniões alternativas, então é a democracia que tem um problema.

Não há muito de admirável neste mundo novo. Embora o objetivo pareça ser sempre a promoção da tolerância, o resultado (não) intencional da imposição de modos de expressão é a diminuição da liberdade.

A natureza é competitiva. A democracia é confrontacional. A confrontação faz-se dentro de deveres e direitos estabelecidos. Costumávamos chamar-lhe liberdade de expressão.

A história mostra que inventar palavras ou dar novos usos às que sobreviveram ao teste do tempo é uma regra dos manuais totalitários. Isso devia ser um alerta para a defesa da democracia contra os charlatães da Igreja Universal da Neutralidade de Género. Eles/Elas estão, laboriosamente, a conduzir a discussão para onde menos se joga a igualdade e a integração e a tolerância. Estão a levar-nos para onde menos encontramos os direitos das mulheres ou as liberdades individuais. Quaisquer que elas sejam.

IN "SOL"
23/02/18

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