26/01/2018

MÁRIO CORDEIRO

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Fast food 
– um caso de amor e ódio

Quando alguém quer arranjar um bode expiatório para obesidades não assumidas ou para hábitos alimentares desconchavados aponta logo um dedo acusador às cadeias de fast food, designadamente à maior do mundo


Há uns tempos, na consulta, perante um adolescente com grande excesso de peso e ao explicar-lhe a situação, falei-lhe, logicamente, dos cuidados a ter com a alimentação. Ele até estava a ouvir e, pareceu-me, a gostar da conversa. Mas logo a mãe interveio e exclamou: “Oh, doutor, mas como é que ele pode estar gordo se só vai de vez em quando ao McDonald’s?!”

Foi difícil, a partir daí, fazer-lhe ver (à mãe) que o que estava errado era a nutrição familiar – aliás, a senhora também era um pouco para o avantajado –, desde o que estava dentro do frigorífico ou na despensa até ao modo de confecionar as refeições; esmiuçando o assunto, descobri que a ementa familiar continha tantos fritos e molhos, confeção com banha e consumo de carne de porco e derivados que enjoava só de ouvir… além dos donuts, croissants e bolas com creme da cantina escolar e das pastelarias. “Ele gosta tanto!”, dizia a mãe, com uma expressão carinhosa de amor maternal.

Ou muito me engano (espero que sim!), ou, no final da consulta, aquela mãe não estava convencida de que poderia mudar alguma coisa. Mais, acho que nem considerava que deveria mudar alguma coisa, pois o filho “até nem estava assim gordo, apenas um bocadinho redondinho” e, dos eventuais gramas a mais (que eram bastos quilos!), o “grande Satã” é que teria a culpa… Ou quase, já que o filho “nem ia lá muito”. Era uma missão impossível explicar àquela senhora que o que se come todos os dias é que conta. A regra, pois, porque as exceções são apenas isso: exceções, e não serão elas que farão alguma mossa.

Quando alguém quer arranjar um bode expiatório para obesidades não assumidas ou para hábitos alimentares desconchavados aponta logo um dedo acusador às cadeias de fast food, designadamente à maior do mundo. Quando não é tema para diatribes políticas e filosóficas, claro. Ouve-se um pouco de tudo: que deram cabo da juventude. Que põem minhocas nos hambúrgueres. Que estão feitas com a “globalização”, no sentido de dominar o mundo. “Imagina que já há na China!”, comenta-se, como se os chineses tivessem menos direitos do que qualquer outro povo. Deus nos guarde dos purificadores das almas: dá-se-lhes um pouco de trela e logo se cai numa atitude proibicionista – era bom, era, a seguir vinha a proibição do consumo de álcool, do bacalhau com natas e, imediatamente, das saídas à noite ou da presença de mulheres em estádios de futebol, e sei lá mais o quê. Sim, porque as atitudes proibicionistas não se centram apenas nalgumas coisas ou nalguns grupos etários em que até se poderiam justificar, mas tendem a estender- -se porque, se formos a ver, o excesso de tudo faz mal à saúde. Quem comer apenas alface e cenouras terá graves carências alimentares.


Não quer isto dizer, atenção, que não se aprovem, por exemplo, medidas de controlo dos teores de sal e de açúcar dos alimentos e algumas limitações em cantinas, bares e máquinas de venda automática de espaços geridos pelas autoridades públicas, mas mais importante é oferecer opções e alternativas saudáveis e pensar que a maioria dos alimentos é consumida em casa e não fora dela, além de informação e formação nas escolas. O fundamentalismo purificador só gera mais “asneiras”, e quem tem dúvidas que reveja a história da “lei seca” nos EUA, que durou de 1920 a 1933 e só levou a um maior consumo de álcool e ao apogeu do mercado negro e de máfias que controlavam esse mercado.

Sem ser um grande apreciador das refeições servidas nesse tipo de restaurantes – até porque não gosto muito de comer à mão e não descobri ainda a maneira de o fazer sem me sujar... falta de jeito, talvez –, não tenho pejo de dizer que vou lá de vez em quando, sempre que aparece um pretexto lógico, descobrindo opções de baixas calorias, como as saladas e as bebidas sem açúcar ou a vulgar mas saudável água.

Tenho uma certa desconfiança das “explicações fáceis” para assuntos complexos, sobretudo quando cientificamente não provadas e, logicamente, pouco claras. A solução mais tentadora para “acabar” com a obesidade e o excesso de peso que grassam nas crianças e jovens portugueses – e em todos os grupos etários, diga--se de passagem – é arranjar um culpado para os desvios alimentares de toda uma sociedade, tanto mais que ninguém admite verdadeiramente gostar de ir a um restaurante de fast food, pelo menos na faixa etária dos pais.

Arranjando um Lúcifer (está na moda bradar pelo mafarrico!), branqueamos as “porcarias” que comemos na “home sweet home” (sweet, fat and fried...), o que se compra no supermercado e que se sabe fazer mal à saúde, e não se avalia o que existe nas cantinas escolares, o que, amiúde, é um autêntico atentado a uma nutrição equilibrada e inteligente. Numa palavra, é mais fácil isentarmo-nos da responsabilidade que deveria ser e tem de ser nossa.

Será que a sociedade mudou por causa das cadeias de fast food? Ou serão elas parte integrante de um tipo de sociedade? Neste caso, parece evidente qual surgiu primeiro, se o ovo ou a galinha (e esta não foi na forma de nuggets...). Se, adotando uma atitude de facilitismo muito conveniente mas que nada resolve, atribuirmos o nosso tipo de vida acelerado, e desajustado dos ritmos biológicos, ou a falta de diálogo e de comunicação entre as pessoas (mesmo entre adultos, não apenas entre adultos e adolescentes), ou até a má gestão dos dinheiros públicos ou a fraca qualidade da programação televisiva e o abuso da internet às cadeias de fast food, então devo estar verdadeiramente a ver mal o problema e a ser muito ingénuo!

A verdade verdadinha é que só entra num destes restaurantes quem quer. Quem opta por entrar escolhe o menu que quer. Quando quer. Como quer. Dizer o contrário é, quanto a mim, contribuir para esta nova atitude, muito correta politicamente mas sórdida do ponto de vista ético, de desresponsabilizar o indivíduo pelas suas escolhas e opções. “Ninguém sabe que faz mal”… coitadinhos… num mundo de informação, querem esgrimir com a sua ignorância quando dá jeito, e depois, quando a coisa dá para o torto, a culpa é sempre dos outros. É bom, não é, ter alguém a quem atribuir as culpas das decisões que são e devem ser nossas?…

* MÉDICO PEDIATRA

IN "i"
23/01/18

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