01/01/2018

ÂNGELA MARQUES

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A leitura de hipermercado

Eram quase nove da noite e o sinal sonoro já tinha soado: "Salve-se quem puder, este hipermercado fecha em 3… 2…" Um miúdo à minha frente na fila estava em modo "daqui não saio daqui ninguém me tira", agarrado a um livro e desgarrado do pai que fazia as compras para a semana com cara de fim de mês. Tudo normal, tirando a anormalidade de termos ali um miúdo a ler um livro. Olhei duas vezes: um livro, feito de papel. Sem ligação à Internet.

Se eu, fiel consumidora de bens de quinta necessidade, estava concentrada na variedade do meu cesto (ovos moles, pão com sementes de chia, camarões para o jantar), o miúdo só tinha olhos para o que lia. Apoiado no pai, que tentava equilibrar cereais de pequeno-almoço, iogurtes e lombos de pescada em cima de maçãs, detergente para a loiça e rolos de papel de alumínio, ele só se mexia se o pai se movesse.

Percebi que o livro seria importante para ele quando, perdendo o pé de apoio, quase caiu mas não desviou o olhar da obra e conseguiu virar a página antes de ouvir o ralhete do pai e subsequente riso da senhora na caixa. Sorri para mim: passei anos a ser aquele miúdo. Devo milhares de euros às maiores cadeias de hipermercados do País (prescreveu no final do século XX, já devolvi tudo em cartão) – é, passei anos a ler livros sem os pagar.

Espreitei outra vez o miúdo. Enquanto o pai punha as compras em sacos, ele, carente de óculos, enfiava a cabeça nas páginas. Sem saber, era um quadro vivo a devolver-me a esperança: o melhor do mundo são mesmo as crianças, os livros e os hipermercados cheios de crianças a lerem livros. De repente, fechou o livro. Espreitei uma última vez e consegui ver-lhe o título: A Seita. E a esperança foi a última a morrer.

IN "SÁBADO"
29/12/17

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