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HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
Yuval Harari:
"Não sabemos o que ensinar aos jovens pela primeira vez na História"
Obama, Bill
Gates e Mark Zuckerberg ficaram fascinados com o livro 'Sapiens' de
Yuval Noah Harari. O historiador dá a sua primeira entrevista para
Portugal aquando do seu novo trabalho: Homo Deus
O
livro anterior de Yuval Harari, Sapiens: Uma Breve História da
Humanidade, foi um sucesso mundial, tanto assim que o então Presidente
Barack Obama disse que era o seu livro de mesa de cabeceira, Bill Gates
repetiu, Mark Zuckerberg colocou-o no seu clube de leitura online e o
Youtube encheu-se de vídeos das suas aulas. Em Portugal, o historiador
israelita não passou despercebido e alguns milhares já leram as quatro
edições do antecessor de Homo Deus - História Breve do Amanhã (editora
Elsinore), o seu mais recente trabalho de investigação lançado seis anos
após o primeiro.
Em quase 500 páginas, o professor do departamento de História da
Universidade Hebraica de Jerusalém faz uma análise da evolução do Homem
que se segue e questiona quais poderão ser os passos de gigante dos
habitantes da Terra. Uma antevisão pouco agradável, onde a Inteligência
Artificial e a biogenética destituirão em breve as regras que gerem as
sociedades atuais. Nesta entrevista ao DN, a primeira para Portugal,
Yuval Harari explica como os netos dos nossos netos só serão em parte
humanos, que será o algoritmo a decidir os empréstimos de um banco, que
as reivindicações dos excluídos serão ignoradas e que o que hoje se
ensina nas escolas e universidades de pouco servirá dentro de no máximo
duas décadas. Não pretende que seja uma perceção catastrófica, antes o
resultado da evolução da tecnologia ao nosso dispor no século XXI e que
será impossível de travar. Harari tornou-se uma celebridade mundial,
gay, vive com o marido numa comunidade israelita, vegan e recusa-se a
usar um smarthphone.
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Olho para o seu livro e imagino o autor como um drone dotado de inteligência artificial a sobrevoar o planeta Terra. Revê-se nesta imagem?
Até certo ponto. Eu tento ser realmente
como um drone que voa a grande altitude e observa tudo o que acontece na
Terra sem tomar partidos. No entanto, ao contrário de um drone ou de
uma inteligência artificial, eu não me foco apenas nos acontecimentos
materiais. Tento compreender como as pessoas se sentem e dou um lugar
central no meu livro às questões éticas e filosóficas. Não vale a pena
escrever História se nos esquecermos da dimensão ética.
Começa o livro com uma grande pergunta: "Estamos a controlar a
fome, as epidemias e a guerra. O que irá substituí-las?" Qual é o seu
prognóstico?
No séc. XXI a
principal ambição humana não será meramente o controlo da fome, das
epidemias e da guerra, mas sim a de transformar os humanos em deuses. E
digo isto no sentido literal. Os seres humanos esforçar-se-ão por
adquirir capacidades que foram inicialmente pensadas como capacidades
divinas. Em particular, a capacidade de manipular e criar vida. Assim
como na Bíblia Deus criou animais, plantas e seres humanos de acordo com
os seus desejos, também no séc. XXI iremos provavelmente aprender como
projetar e fabricar animais e plantas e, até, seres humanos segundo os
nosso desejos. Iremos usar a engenharia genética para criar novos tipos
de seres orgânicos; usaremos interfaces diretas cérebro-computador com o
objetivo de criar ciborgues (seres que combinam partes orgânicas com
partes inorgânicas); e podemos até conseguir criar seres completamente
inorgânicos. Os principais produtos da economia do séc. XXI não serão
têxteis, veículos e armas, mas sim corpos, cérebros e mentes. Foi por
isso que dei ao livro o título de Homo Deus (homem-deus).
Ao comentar o estado atual da humanidade diz: "Vejamos o que o
dia de hoje nos reserva". Esta é uma questão para o mundo inteiro ou
apenas para os menos afortunados?
Ainda há milhares de milhões de pessoas
pobres no mundo que sofrem de desnutrição e doenças, mas as fomes em
massa estão a tornar-se raras. No passado, de tantos em tantos anos
havia secas ou inundações, ou outro tipo qualquer de catástrofe natural,
a produção de alimentos caía a pique e milhões de pessoas morriam à
fome. Atualmente, a humanidade produz tanta comida e consegue
transportá-la tão rapidamente e de forma tão barata que os desastres
naturais nunca resultam, por si próprios, em fome em massa. Já não
existe fome natural no mundo, há apenas fome de origem política. Se as
pessoas ainda morrem de fome na Síria, no Sudão ou na Coreia do Norte é
apenas porque alguns governos assim o desejam.
Vejamos
a China, por exemplo. Há poucas décadas a China era ainda um paradigma
de escassez de alimentos. Dezenas de milhões de chineses morreram de
fome durante o Grande Salto em Frente e os especialistas previam
rotineiramente que o problema só iria piorar. Em 1974 teve lugar em Roma
a primeira Conferência Mundial da Alimentação e os delegados foram
presentados com cenários apocalíticos. Foi-lhes dito que a China nunca
conseguiria alimentar os seus mil milhões de pessoas e que o país mais
populoso do mundo estava a caminho da catástrofe. Na verdade estava a
caminho do maior milagre económico da história. Desde 1974 centenas de
milhões de chineses saíram da pobreza e apesar de haver ainda centenas
de milhões que sofrem muitíssimo de privações e desnutrição, a China
está pela primeira vez nos seus registos históricos livre da fome.
De
facto, na maioria dos países, hoje, comer demais tornou-se um problema
muito pior do que a fome. No século XVIII, Maria Antonieta supostamente
aconselhou as massas famintas a que, se ficassem sem pão, comessem
bolos. Hoje, os pobres seguem este conselho à letra. Enquanto os
habitantes ricos de Beverly Hills comem salada de alface e tofu cozido a
vapor com quinoa, nos bairros da lata e guetos os pobres engolem bolos
industriais, pacotes de aperitivos salgados, hambúrgueres e pizzas. Em
2014, mais de 2100 milhões de pessoas tinham excesso de peso, contra 850
milhões que sofriam de desnutrição. Calcula-se que em 2030 metade da
humanidade sofra de excesso de peso. Em 2010, a fome e a desnutrição
combinadas mataram cerca de um milhão de pessoas, enquanto a obesidade
matou três milhões.
Afirma que as guerras estão a diminuir. Quando vê o Presidente
Trump atirar uma super-bomba sobre o Afeganistão sente vontade de
alterar o texto do livro?
Eu
não disse que as guerras iriam inevitavelmente desaparecer. O que eu
disse foi que nós transformámos as guerras de uma catástrofe inevitável
além do controlo humano numa ameaça gerível. No passado, os seres
humanos pensavam que as guerras eram uma parte natural do mundo e
somente Deus poderia trazer a paz à Terra. Mas ao longo das últimas
décadas, os seres humanos descobriram que têm o poder de trazer a paz à
Terra por si mesmos, se tomarem as decisões certas.
Ainda
há guerras em algumas partes do mundo, eu vivo em Israel por isso sei
muito bem disso. Mas grandes partes do mundo estão completamente livres
da guerra e muitos estados deixaram de usar a guerra como um instrumento
padrão para promover os seus interesses. Nas sociedades agrícolas
antigas, cerca de 15% de todas as mortes eram causadas pela violência
humana. Hoje, em todo o mundo, as mortes causadas pela violência humana
são menos de 1,5%. De facto, o número de suicídios é hoje maior do que o
número de mortes violentas! São maiores as hipóteses de se morrer por
suicídio do que de se ser morto por um qualquer soldado inimigo, um
terrorista ou um criminoso. Da mesma forma, o número de pessoas que
morrem por obesidade e doenças relacionadas é muito mais elevado do que o
número de pessoas mortas por violência humana. O açúcar é hoje mais
perigoso do que a pólvora.
O que
originou esta nova era de paz? Existem duas causas principais. Em
primeiro lugar, as armas nucleares transformaram a guerra entre
superpotências em suicídio coletivo. Assim, as superpotências tiveram
que mudar completamente o sistema internacional e encontrar maneiras de
resolver conflitos sem grandes guerras. Em segundo lugar, as mudanças
económicas transformaram o conhecimento no principal ativo económico.
Anteriormente, a riqueza era principalmente riqueza material: campos de
trigo, minas de ouro, escravos, gado. Isso encorajava a guerra, porque
era relativamente fácil conquistar riqueza material através da guerra.
Hoje, a riqueza está cada vez mais baseada no conhecimento. E não se
pode conquistar o conhecimento através da guerra. Não se pode, por
exemplo, conquistar a riqueza de Silicon Valley através da guerra,
porque não há minas de silício no Vale do Silício - a riqueza vem do
conhecimento dos engenheiros e técnicos. Consequentemente, hoje, a
maioria das guerras está restrita àquelas partes do mundo - como o Médio
Oriente - onde a riqueza é a riqueza material antiquada (principalmente
campos de petróleo).
Foi fácil integrar a afirmação constante do terrorismo neste seu exame?
O
terrorismo é em grande parte teatro. Os terroristas encenam um
espetáculo de violência aterrorizador que domina a nossa imaginação e
nos faz sentir como se estivéssemos a resvalar de novo para o caos
medieval. Consequentemente os estados sentem-se muitas vezes obrigados a
reagir ao teatro do terrorismo com um espetáculo de segurança,
orquestrando enormes exibições de força, como a perseguição de
populações inteiras ou a invasão de países estrangeiros. Na maior parte
dos casos, essa reação exagerada ao terrorismo representa uma ameaça
muito maior à nossa segurança do que os próprios terroristas.
Os
terroristas são como uma mosca que tenta destruir uma loja de
porcelanas. A mosca é tão fraca que não consegue mover nem uma chávena
de chá. Assim, encontra um touro, entra para dentro do seu ouvido e
começa a zumbir. O touro fica louco de medo e fúria e destrói a loja de
porcelanas. Foi o que aconteceu no Médio Oriente na última década. Os
fundamentalistas islâmicos nunca conseguiriam ter derrubado Saddam
Hussein sozinhos. Em vez disso, eles enfureceram os EUA com os atentados
de 11 de setembro e os EUA destruíram a loja de porcelanas do Médio
Oriente por eles. Agora eles florescem nos destroços. Portanto, na
verdade, o sucesso ou o fracasso do terrorismo dependem de nós. Se
permitirmos que os terroristas dominem a nossa imaginação e, depois,
reagirmos exageradamente aos nossos próprios medos, o terrorismo terá
êxito. Se libertarmos a nossa imaginação dos terroristas e reagirmos de
forma equilibrada e calma, o terrorismo fracassará.
No
subcapítulo O Direito à Felicidade considera que este é o segundo
grande projeto na agenda da humanidade. Mas, como dizia Epicuro, esta
busca não continua a conduzir à infelicidade?
Sim,
até agora a busca da humanidade pela felicidade não foi muito
bem-sucedida. Nós somos hoje muito mais poderosos do que alguma vez
fomos e a nossa vida é certamente mais confortável do que no passado,
mas é duvidoso que sejamos muito mais felizes do que os nossos
antepassados. Os americanos médios têm um carro, um telemóvel, um
frigorífico cheio de comida e um armário cheio de medicamentos, coisas
com que os seus antepassados dificilmente poderiam sonhar. No entanto,
os americanos estão tão irritados e insatisfeitos com a sua situação,
que elegeram Donald Trump como seu presidente. Aparentemente, não é
fácil traduzir o poder em felicidade.
Uma
explicação é que a felicidade depende menos de condições objetivas e
mais das nossas próprias expectativas. As expectativas, no entanto,
tendem a adaptar-se às condições. Quando as coisas melhoram, as
expectativas aumentam e, consequentemente, mesmo melhorias drásticas nas
condições podem deixar-nos tão insatisfeitos como antes.
Eu valorizo muito Marx. Até certo ponto,
todos nós somos marxistas hoje. Podemos não aceitar o programa político
de Marx, mas mesmo os capitalistas mais radicais analisam a história e a
política usando o pensamento marxista. Por exemplo, quando tentamos
entender a ascensão de Donald Trump, geralmente pensamos que as mudanças
económicas, como a crescente desigualdade entre a classe operária
americana e a classe alta, levam a convulsões políticas. Essa é uma
análise marxista.
No entanto, no séc.
XXI as teorias marxistas estão a perder relevância. O marxismo assume
que a classe trabalhadora é vital para a economia e os pensadores
marxistas tentaram ensinar ao proletariado como traduzir o seu imenso
poder económico em força política. Esses ensinamentos podem tornar-se
completamente irrelevantes no séc. XXI, pois a IA e os robôs substituem
os seres humanos em mais e mais empregos e as massas perdem o seu valor
económico. Na verdade, pode haver quem argumente que o brexit e Trump já
demonstram uma trajetória oposta à que Marx imaginava. Em 2016, os
britânicos e os americanos que perderam a sua utilidade económica, mas
que ainda conservam o poder político, usaram esse poder para se
revoltarem antes que seja tarde demais. Eles não se revoltam contra uma
elite económica que os explora, mas contra uma elite económica que já
não precisa deles.
Preocupa-o a certeza de que nos vamos confrontar em breve com uma raça de super-homens, o seu Homo Deus?
Sim,
existe o perigo de a humanidade se dividir em castas biológicas. À
medida que a biotecnologia se for desenvolvendo será possível prolongar o
tempo da vida humana e melhorar as capacidades humanas, mas os novos
tratamentos maravilha podem ser caros e podem não estar disponíveis
gratuitamente para todos os milhares de milhões de seres humanos. Assim,
a sociedade humana no séc. XXI pode ser a mais desigual da História.
Pela primeira vez na História, a desigualdade económica será traduzida
em desigualdade biológica. Pela primeira vez na História, as classes
superiores não serão apenas mais ricas do que o resto da humanidade, mas
também viverão muito mais tempo e terão muito mais talento.
A
ascensão da inteligência artificial pode exacerbar este problema.
Dentro de algumas décadas, a IA pode tornar a maioria de seres humanos
inúteis. Estamos agora a desenvolver software para computadores e IA que
superam os seres humanos em cada vez mais tarefas, desde conduzir
carros até diagnosticar doenças. Como resultado, os especialistas
calculam que dentro de algumas décadas, não serão só os empregos de
taxistas e médicos, mas cerca de 50% de todos os postos de trabalho nas
economias avançadas serão ocupados por computadores.
Podem
aparecer muitos novos tipos de empregos, mas isso não irá
necessariamente resolver o problema. Os seres humanos têm basicamente
apenas dois tipos de capacidades - físicas e cognitivas - e se os
computadores nos superarem em ambas, eles podem superar-nos nos novos
empregos tal como o fizeram nos antigos. Então, qual será a utilidade de
seres humanos nesse mundo? O que faremos com milhares de milhões de
seres humanos economicamente inúteis? Não sabemos. Não temos qualquer
modelo económico para tal situação. Esta pode ser a maior questão
económica e política do século XXI.
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Além
disso, à medida que os algoritmos expulsam os seres humanos do mercado
de trabalho, a riqueza pode concentrar-se nas mãos da pequena elite que
possui os algoritmos todo-poderosos, criando desigualdades sociais e
políticas sem precedentes. Hoje, milhões de motoristas de táxi, de
autocarros e de camiões têm um peso económico e político significativo,
cada um comandando uma pequena parcela do mercado de transportes. Se o
governo faz alguma coisa de que não gostem, eles podem sindicalizar-se e
entrar em greve. No futuro, todo esse poder económico e político pode
ser monopolizado por alguns bilionários que possuem as empresas que
detêm os algoritmos que dirigem todos os veículos.
O Homo sapiens foi apenas mais uma etapa da evolução do Homem e deixou de ser a referência?
Nós
somos provavelmente uma das últimas gerações de Homo sapiens. Ainda
teremos netos, mas não tenho muita certeza de que os nossos netos terão
netos. Pelo menos não humanos. No próximo século ou dois, os seres
humanos ou se destroem a eles mesmos ou evoluem para algo completamente
diferente. Algo que será mais diferente de nós do que nós somos
diferentes dos neandertais ou dos chimpanzés.
[citacao
O algoritmo discrimina-o não porque você é mulher ou homossexual ou
negro, mas porque você é você. Há algo específico sobre si de que o
algoritmo não gosta]
Elege o algoritmo como um fator de discriminação. Como podem os mais fracos defenderem-se?
Ao
reunir dados e poder de computação suficientes, empresas e governos
poderão criar rapidamente algoritmos que me conhecem melhor do que eu
próprio, e então a autoridade deslocar-se-á de mim para o algoritmo. O
algoritmo poderá entender os meus desejos, prever as minhas decisões e
fazer melhores escolhas em meu nome. Tais algoritmos contêm um grande
potencial, mas também um grande perigo. À medida que os algoritmos nos
começam a conhecer tão bem, os governos ditatoriais poderão obter um
controlo absoluto sobre os seus cidadãos, ainda mais do que na Alemanha
nazi, e a resistência a tais ditaduras poderá ser totalmente impossível.
Mesmo em países democráticos, as pessoas podem tornar-se vítimas de
novos tipos de opressão e discriminação. Hoje em dia, cada vez mais
bancos, empresas e instituições estão a usar algoritmos para analisar
dados e tomar decisões sobre nós. Quando pedimos um empréstimo a um
banco é mais provável que o nosso pedido seja processado por um
algoritmo de que por um ser humano. O algoritmo analisa muitos dados
sobre nós e estatísticas sobre milhões de outras pessoas, e decide se
somos suficientemente confiáveis para nos conceder um empréstimo. Muitas
vezes, o algoritmo faz um trabalho melhor do que um banqueiro humano.
Mas o problema é que, se o algoritmo discriminar algumas pessoas
injustamente, é difícil saber isso. Se o banco se recusar a dar-nos um
empréstimo e perguntarmos "porque não?", o banco responde "o algoritmo
disse que não". Se perguntarmos "por que motivo o algoritmo disse que
não?", o banco responde, "Nós não sabemos. Nenhum ser humano entende
este algoritmo, porque é baseado na aprendizagem avançada da máquina.
Mas nós confiamos no nosso algoritmo, por isso não lhe concederemos um
empréstimo".
No passado, as pessoas
discriminavam grupos inteiros como mulheres, homossexuais e negros.
Assim, as mulheres, os homossexuais ou os negros, podiam organizar-se e
protestar contra a sua discriminação coletiva. Mas agora o algoritmo
pode discriminá-lo a si, e você não faz ideia da razão. Talvez o
algoritmo tenha encontrado alguma coisa no seu ADN ou na sua história
pessoal que não lhe agrada. O algoritmo discrimina-o não porque você é
mulher ou homossexual ou negro, mas porque você é você. Há algo
específico sobre si de que o algoritmo não gosta. Você não sabe o que é,
e mesmo que soubesse, não se pode organizar com outras pessoas para
protestar, porque não há outras pessoas. É apenas você. Em vez da
discriminação coletiva como no século XX, talvez no século XXI tenhamos
um grande problema de discriminação individual.
Quando aponta o Dataísmo como a próxima religião não está a ir
longe de mais? Falando de religião, esta tem um prazo de validade?
Primeiro,
devemos entender o que é a religião. A religião não é a crença em
deuses. Em vez disso, a religião é qualquer sistema de normas e valores
humanos que se baseia na crença em leis sobre-humanas. A religião
diz-nos que devemos obedecer a certas leis que não foram inventadas
pelos seres humanos e que os seres humanos não podem mudar à sua
vontade. Algumas religiões, como o islão, o cristianismo e o hinduísmo,
acreditam que essas leis sobre-humanas foram criadas pelos deuses.
Outras religiões, como o budismo, o capitalismo e o nazismo, acreditam
que essas leis sobre-humanas são leis naturais. Assim, os budistas
acreditam nas leis naturais do carma, os nazis argumentaram que a sua
ideologia refletia as leis da seleção natural, e os capitalistas
acreditam que seguem as leis naturais da economia.
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Não
importa se acreditam em leis divinas ou em leis naturais, todas as
religiões têm exatamente a mesma função: dar legitimidade às normas e
valores humanos e dar estabilidade às instituições humanas, como estados
e empresas. Sem algum tipo de religião é simplesmente impossível manter
a ordem social. Durante a era moderna, as religiões que acreditam nas
leis divinas entraram em declínio. Mas as religiões que acreditam nas
leis naturais tornaram-se cada vez mais poderosas. No futuro, é provável
que se tornem mais poderosos ainda. Silicon Valley, por exemplo, é hoje
uma incubadora de novas tecno-religiões. Eles prometem todos os velhos
prémios religiosos - felicidade, paz, prosperidade e vida eterna - mas
aqui na terra com a ajuda da tecnologia e não depois da morte com a
ajuda de seres sobrenaturais.
O seu livro anterior foi amplamente reconhecido. Alguém aprendeu a lição?
Não
estou certo de que o objetivo do estudo da História seja aprender
lições práticas. Na minha opinião, devemos estudar a História não para
aprender com o passado, mas para nos libertarmos dele. Cada um de nós
nasce num mundo particular, governado por um sistema particular de
normas e valores, e uma determinada ordem económica e política. Como
nascemos nele, tomamos a realidade circundante como natural e
inevitável, e tendemos a pensar que a maneira como as pessoas hoje vivem
as suas vidas é a única possível. Raramente nos damos conta de que o
mundo que conhecemos é o resultado acidental de acontecimentos
históricos aleatórios que condicionam não só a nossa tecnologia,
política e economia, mas até mesmo a maneira como pensamos e sonhamos. É
assim que o passado nos agarra pela parte de trás da cabeça, e vira o
nosso olhar para um único futuro possível. Sentimos o aperto do passado
desde que nascemos, por isso nem sequer nos apercebemos dele. O estudo
da História visa reduzir esse aperto e permitir-nos virar a nossa cabeça
mais livremente, pensar de maneira diferente e ver muitos mais futuros
possíveis.
Se não conhecermos a
História, facilmente confundimos os seus acidentes com a nossa
verdadeira essência. Por exemplo, pensamos em nós mesmos como
pertencendo a uma determinada nação, como Israel ou a Coreia;
acreditamos numa certa religião; vemo-nos como indivíduos; acreditamos
que temos certos direitos naturais. Então, quando me pergunto "quem sou
eu?" posso responder que "sou israelita, sou judeu e sou um indivíduo
que tem direitos inalienáveis ??à vida, à liberdade e à busca da
felicidade".
No entanto, o
nacionalismo, o individualismo, os direitos humanos e a maioria das
religiões são desenvolvimentos recentes. Antes do séc. XVIII, o
nacionalismo era uma força bastante fraca, e a maioria das nações de
hoje não tem mais de um século de existência. O indivíduo foi criado
pelo estado e pelo mercado modernos, na sua luta para quebrar o poder
das famílias e comunidades tradicionais. Os direitos humanos são uma
história inventada nos últimos três séculos, que não tem base na
biologia. Não há direitos inscritos no nosso ADN. A maioria das
religiões que conhecemos hoje nasceu apenas nos últimos dois ou três mil
anos e sofreu profundas mudanças nos últimos séculos. O judaísmo ou o
cristianismo de hoje são muito diferentes do que eram há 2000 anos. Não
são verdades eternas, mas criações humanas. Algumas dessas criações
podem ter sido muito benéficas, é claro, mas para conhecer a verdade
sobre nós mesmos precisamos ir além de todas essas criações humanas. É
por isso que a História me interessa tanto. Eu quero conhecer a
História, para poder ir além dela e entender a verdade que não é o
resultado de acontecimentos históricos aleatórios.
É sempre referido como um historiador israelita. Porquê sempre a qualificação da nacionalidade?
Eu
não me classifico como "um historiador israelita". Eu não acho que a
nacionalidade seja assim tão importante. Acho mesmo que os meus
antecedentes judaicos têm muito menos influência na minha visão da
História do que se poderia esperar. Eu sou judeu por etnia, mas não na
minha religião e na minha visão do mundo. Sou muito mais influenciado
por Buda e Darwin do que pela Bíblia. É claro que as minhas experiências
como israelita moldaram a minha vida e a minha compreensão do mundo até
certo ponto. O mundo parece diferente visto de Jerusalém, de Nova
Iorque ou de Pequim, e se eu tivesse crescido em Nova Iorque ou Pequim,
provavelmente teria escrito um livro diferente. Em particular, porque
vivo no Médio Oriente, com todos os conflitos nacionalistas e
religiosos, estou muito consciente do imenso poder das histórias
imaginárias para controlar as nossas vidas. As pessoas estão a matar-se
por todo o lado por puras ficções. É por isso que é tão importante para
mim distinguir a realidade da ficção.
"Homo Deus" resulta de uma investigação complexa. Foi confrontado com caminhos sem saída?
O meu objetivo principal ao escrever Homo Deus não era profetizar o
futuro, mas sim questionar o nosso futuro e explorar várias
possibilidades. O livro foca-se na interação entre tecnologia, política,
sociedade e religião. O que acontecerá com a política quando os
algoritmos Big Data conhecerem os nossos desejos e opiniões melhor do
que nós próprios os conhecemos? O que acontecerá com o mercado de
trabalho quando os computadores superarem os seres humanos em cada vez
mais tarefas, e a inteligência artificial substituir taxistas, médicos,
professores e polícias? O que faremos com milhares de milhões de pessoas
economicamente inúteis? Como irão lidar religiões como o cristianismo e
o islão com a engenharia genética e o potencial de criar super-humanos e
superar a velhice e a morte? Irá Silicon Valley acabar por produzir
novas religiões, em vez de apenas novos gadgets?
Ao
tentar responder a essas perguntas encontrei obviamente muitos becos
sem saída. Ninguém sabe realmente como será o mundo dentro de 30 ou 60
anos. Na verdade, acho que a nossa capacidade de entender o mundo é hoje
menor do que nunca. No passado, o conhecimento humano aumentava
lentamente e a tecnologia demorava tempo a ser desenvolvida, de modo que
a política e a economia também mudavam a um ritmo lento. Hoje, o nosso
conhecimento está a aumentar a uma velocidade vertiginosa e,
teoricamente, deveríamos entender o mundo cada vez melhor. Mas está a
acontecer precisamente o contrário. Os nossos conhecimentos
recém-adquiridos levam a mudanças económicas, sociais e políticas mais
rápidas. Na tentativa de entender o que está a acontecer, aceleramos a
acumulação de conhecimento, o que leva apenas a agitações mais rápidas e
maiores. Consequentemente, estamos cada vez menos aptos a dar sentido
ao presente ou a prever o futuro. Ninguém sabe realmente o que está a
acontecer hoje no mundo, ou onde estaremos no futuro.
Há
mil anos, em 1017, havia muitas coisas que as pessoas não sabiam sobre o
futuro, mas podiam ter certeza sobre as características básicas da
sociedade humana. Se você vivesse na Europa em 1017 sabia que em 1050 os
Vikings poderiam invadir novamente, as dinastias poderiam cair e as
pestes ou terramotos poderiam matar milhões. No entanto, era claro para
si que mesmo em 1050 a maioria dos europeus ainda trabalharia na
agricultura, os homens ainda dominariam as mulheres, a expectativa de
vida seria de cerca de 40 anos e o corpo humano seria exatamente o
mesmo. Hoje, pelo contrário, não fazemos ideia de como a Europa ou o
resto do mundo vai ser em 2050. Não sabemos o que as pessoas farão como
trabalho, não sabemos como serão as relações de género, as pessoas
poderão viver muito mais do que hoje e o próprio corpo humano pode
sofrer uma revolução sem precedentes graças à bioengenharia e a
interfaces diretas entre cérebro e computador.
Consequentemente,
pela primeira vez na história, não fazemos ideia do que ensinar às
crianças na escola ou aos estudantes na faculdade. Em 1017, os pais
ensinaram aos seus filhos como plantar trigo, como tecer lã, ou como ler
a Bíblia e era óbvio que essas capacidades ainda seriam necessárias em
1050. Pelo contrário, a maior parte do que as crianças aprendem hoje na
escola será irrelevante em 2050.
Sabemos
que tecnologias como a IA e a bioengenharia mudarão o mundo, mas não
temos certeza de como o farão, porque a tecnologia nunca é determinista.
Podemos usar os mesmos avanços tecnológicos para criar tipos muito
diferentes de sociedades e situações. Por exemplo, no séc. XX, as
pessoas podiam usar a tecnologia da Revolução Industrial - comboios,
eletricidade, rádio, telefone - para criar ditaduras comunistas, regimes
fascistas ou democracias liberais. Basta pensar na Coreia do Sul e na
Coreia do Norte: os dois países tiveram acesso exatamente à mesma
tecnologia, mas eles optaram por empregá-la de maneiras muito
diferentes.
No séc. XXI, a ascensão da
IA ??e da biotecnologia irá certamente transformar o mundo, mas isso não
implica um resultado determinista único. Podemos usá-las para criar
tipos muito diferentes de sociedades. Como usá-las sabiamente é a
questão mais importante que a humanidade enfrenta atualmente. É muito
mais importante do que a crise económica mundial, as guerras no Médio
Oriente ou a crise dos refugiados na Europa. O futuro, não só da
humanidade, mas provavelmente da própria vida, depende de como
escolhemos usar a IA e a biotecnologia.
Para
dar um exemplo, consideremos o que a biotecnologia pode significar para
a criação de animais. Atualmente, os seres humanos tratam os animais de
criação, como vacas, porcos e galinhas, como se fossem apenas máquinas
para a produção de carne, leite e ovos. Nós infligimos um sofrimento
tremendo a biliões de seres sensíveis, que conseguem sentir dor, medo e
solidão. Os avanços na biotecnologia dão-nos agora uma escolha. Por um
lado, podemos usar a biotecnologia para criar vacas, porcos e galinhas
que crescem mais rapidamente e produzem mais carne, sem pensar no
sofrimento que infligimos a esses animais. Por outro lado, poderíamos
usar a biotecnologia para criar o que é conhecido como "agricultura
celular" ou "carne limpa" - carne que é produzida em laboratórios a
partir de células animais, sem necessidade de criar e abater criaturas
inteiras. Se quisermos um bife, poderemos limitar-nos a produzir um
bife, em vez de criar e abater uma vaca inteira. Isso não é ficção
científica. O primeiro "hambúrguer limpo" foi produzido em 2013. É
verdade que custou 330 000 dólares, mas, hoje, produzir um hambúrguer
desses custa apenas 11 dólares, e dentro de alguns anos é provável que
custe menos do que um hambúrguer de "carne abatida". Com a investigação e
o investimento certos, dentro de uma década ou duas poderíamos produzir
carne limpa em escala industrial, que será mais barata, mais ecológica e
mais ética do que criar vacas. A escolha depende de nós.
Homo Deus - História Breve do Amanhã
Yuval Noah Harari
Editora Elsinore
480 páginas
22 euros
* Uma entrevista para ler duas vezes, pelo menos.
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