14/12/2017

MARTA CAIRES

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E estamos quase na Festa

Saudades da festa lá por cima no Laranjal, em família, com o meu irmão a largar bombas e a minha mãe a arrastar-me pelo beco, que não ia sozinha às novenas da Virgem

E pronto, estamos quase na Festa, o ano andou depressa, parece que os meses são mais curtos e os dias têm menos horas. Ou sou eu que não tenho andamento para isto, ainda outro dia estava calor e daqui a nada começam as missas do parto. Não é que vá, custa-me acordar de madrugada e falta-me talento para cantar no tom ‘Virgem do Parto, ó Maria’. E sem as cantigas não vale o mesmo, nem chega para acalmar as saudades que o Natal me traz.

Da festa lá por cima no Laranjal, em família, com o meu irmão a largar bombas e a minha mãe a arrastar-me pelo beco, que não ia sozinha às novenas da Virgem e levava-me, que era bonito e da tradição. Eu não gostava, parecia-me mais uma missa com meia dúzia de pessoas, quase todas mulheres a cantar desafinado as ‘nuviens’ piedosas. A malta nova da paróquia começara a dispersar aí pelo fim dos anos 80, fiquei apenas eu incapaz de dizer não à minha entusiasmada mãe.

As tradições eram como que um departamento da minha mãe, nada a deixava mais alegre. Virar a casa do avesso com as limpezas, semear o trigo para a lapinha, plantar junquilhos e fazer bolos, mas todos os anos repetia o mesmo mais ou menos pelo dia da Imaculada Conceição, quando começavam a piscar as gambiarras nas janelas dos vizinhos. “Este ano, não sei porquê, não me lembra à Festa” e dizia num tom desconsolado, a olhar para a nossa casa que, por essa altura, continuava a nossa casa, sem pinheiro, nem presépio e com bordados ainda para acabar.

Aqueles planos, aquela vontade de viver os dias por inteiro, em comprar panos de cozinha e uns sapatos novos traziam-lhe o espírito da época, enchiam a casa e enquanto não fazia as compras de Natal e se metia no autocarro carregada de sacos a Festa não parecia a Festa. Mesmo quando ficava a matutar nos gastos, no dinheiro e nas milhares de preocupações que a afligiam, do que ia ser em Janeiro se continuasse a chover e o meu pai não tivesse onde trabalhar. Até nisso a Festa ganhava e dava esperança e para a ver assim, feliz, eu lá me arrastava para as missas do parto, quando não era moda, nem assunto que se contasse no regresso das férias no corredor do Girassol antes do toque de entrada.

E disso, dessa festa, eu tenho saudades, também sei que não volta. O tempo não se limita a passar, o tempo altera as pessoas, as coisas, as vidas, esquece e recupera modas, faz o que era foleiro ser bonito ou o contrário. O tempo leva e traz, mas também nos revela parte de nós mesmos como o facto de cada vez me parecer mais com a minha mãe, de dar por mim a ter as mesmas manias como esta de mais ou menos pelo dia da Imaculada Conceição ter aquela sensação de que este ano nada me lembra à Festa. Ou porque falhei uns jantares, daqueles do ginásio e da malta da natação, ou porque não montei o pinheiro, se calhar é dos Ferrero Rocher que ainda não comi.

O que vale, nisto de partilhar as mesmas manias da minha mãe, é saber que o espírito há-de chegar, quem sabe quando for ver as luzes, quase me vejo a dizer o mesmo que dizia, no regresso das compras quando o autocarro cortava pela Avenida do Mar, quase a consigo ouvir: “sim, sim, este ano estão mais bonitas”. As luzes estavam sempre mais bonitas e os fachos também, pena era não ter um facho no nosso caminho, mas isso também não era segredo, nós vivíamos no fim do mundo, num lugar esquecido, onde a minha mãe fazia tudo para termos um Natal como devia ser, até comprava bombas para o meu irmão rebentar no quintal.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
10/12/17

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