Estou farto de corporações
Ainda falta algo no currículo de Jaime Marta Soares: ser general. O primeiro general dos bombeiros portugueses.
Marta Soares é apenas mais um dos milhares de
lobbyistas que pululam por este país, e cujo trabalho consiste em
tentar confundir o interesse público com o interesse da sua corporação.
Este fim-de-semana tive o desprazer de ouvir Jaime Marta Soares,
presidente da Liga dos Bombeiros reeleito com 77,5% dos votos, aos
gritos para um microfone, afirmando que os bombeiros querem ter mais
poder, querem mandar mais, querem ter a mesma autonomia do Exército e da
Marinha, e que se for preciso está disposto a ir para a rua. Disse-o em
tom de ameaça, em frente ao próprio António Costa: “Nunca nos queira
ver nas ruas por outras razões, mas não temos medo de o fazer, se não
nos respeitarem.”
Jaime Marta Soares já foi tudo e já esteve em
todo o lado: foi deputado do PSD, presidente da Câmara de Vila Nova de
Poiares durante 40 anos (segundo o seu sucessor, abandonou o posto em
2013 com uma dívida de 30 milhões de euros), comandante dos bombeiros de
Poiares, presidente da assembleia geral do Sporting e de um sortido de
outras assembleias gerais, que incluem, segundo um perfil catita
elaborado pelo jornal i, “filarmónicas, centros de convívio e
aeroclubes”, e ainda teve tempo para ser fundador e director da
Confraria da Chanfana, com o objectivo de “contribuir para a
certificação deste prato, de origens tão remotas”. Parece muita coisa — e
é. Contudo, ainda falta algo no currículo de Jaime Marta Soares: ser
general. O primeiro general dos bombeiros portugueses.
Jaime Marta Soares não é uma personagem de primeira linha da vida
pública portuguesa, mas é uma personagem absolutamente emblemática da
vida política portuguesa. As pessoas olham para ele e imaginam-no de
mangueira na mão desde os 20 anos de idade. Não se enganem: Marta Soares
é apenas mais um dos milhares de lobbyistas que pululam por este país, e
cujo trabalho consiste em tentar confundir o interesse público com o
interesse da sua corporação. Ele não é nenhum representante da sociedade
civil, nem do esforço de milhares de bombeiros voluntários. É um
político profissional, com várias voltas ao circuito que afundou o país:
primeira curva, Parlamento; segunda curva, poder autárquico; terceira
curva, futebol; quarta curva, empresas ou instituições cujo
financiamento é dependente do poder político. Marta Soares e muitos como
ele deram milhares de voltas a esta pista ao longo da vida, uns
acumulando poder, outros acumulando dinheiro, outros as duas coisas em
simultâneo.
À primeira ameaça que surge no horizonte que possa vir a pôr em causa o statu quo
e o poder que exibem como um penacho, começam as ameaças. Marta Soares
veio agora exigir ser o general dos bombeiros, e reclamar um poder
independente da Protecção Civil, porque sabe que está à beira de ser
despromovido a furriel. Lembram-se da nomeação de Tiago Martins Oliveira
para presidir à estrutura que vai reformular a gestão dos fogos
florestais? Aquilo que está em cima da mesa é a possibilidade de o
combate ao fogo passar a ser feito por profissionais, remetendo-se os
bombeiros voluntários para a defesa das populações. A esse desejo Marta
Soares respondeu assim: o Estado “não tem bombeiros” e os “voluntários
não pertencem ao governo”. Donde: “Continuaremos a fazer pelas
populações aquilo que sempre fizemos.” Reparem: um homem que sempre
viveu do Estado afirma-se agora como grande paladino do associativismo e
da sociedade civil. É preciso ter lata. Jaime Marta Soares só quer
saber dos interesses superiores do país enquanto eles coincidirem com os
interesses superiores da sua corporação — seja a dos bombeiros ou a da
chanfana. Assim que deixam de coincidir, salve-se a corporação e o país
que se lixe.
IN "PÚBLICO"
31/10/17
* Os pensionistas deste miserável blogue estão-lhe muito gratos por ter escrito este artigo.
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