26/11/2017

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ESTA SEMANA 
NO  "SOL"
'O privado não trata os 10% dos doentes que usam 80% dos recursos'

Josep Figueras é o diretor do observatório europeu de políticas e sistemas de saúde e, como tal, coordenou os perfis de saúde dos 28 Estados-Membros apresentados esta semana pela Comissão Europeia, iniciativa que visa ajudar os países a definir prioridades. Recusa dar receitas, mas deixa sugestões de debate: e se o que os portugueses gastam no privado pudesse ajudar o SNS a ser mais eficiente?

O comissário europeu responsável pela pasta da Saúde anunciou que estes perfis vão passar a ser tidos em conta nas recomendações económicas de Bruxelas.
A sustentabilidade financeira é importante mas pode ser atingida apenas com cortes. O que temos tentado transmitir é que tem de ser atingida pela via da eficiência: usando os recursos melhor. Algumas das reformas que Portugal tem desencadeado, por exemplo nos cuidados primários, e esta mais recente de integração dos cuidados – pondo o doente no centro do sistema – caminham nesse sentido. Sei que já têm projetos-piloto para acompanhar o doente ao longo do trajeto no sistema.

A ideia da integração de cuidados é discutida há anos. Por que é que tem sido difícil alterar o sistema?
Os sistemas de saúde tendem a ser muito hospitalocêntricos: os hospitais absorvem a maioria dos recursos. Fico impressionado com a ênfase que Portugal tem dado aos cuidados primários e à integração. É como um grande bidão que custa muito mudar de sítio mas finalmente começa a mexer. 
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A pressão nos hospitais é grande, há listas de espera para atender. Agora que Portugal está a crescer, seria muito importante distribuir parte desse crescimento por estas duas áreas – é sempre mais difícil tirar o dinheiro de um setor e pôr noutro. Uma coisa sabemos: à medida que investimos, menos doentes vão aos hospitais.

O que explica as menores taxas de mortes evitáveis em países como Espanha e França?
É um indicador que não reflete apenas os cuidados de saúde mas o trabalho em termos de rastreios e atuação sobre os determinantes de saúde. Implica prevenção, literacia em saúde. A diminuição da mortalidade infantil foi o grande sucesso na saúde em Portugal nas últimas décadas. Se agora se finalizar a reforma dos cuidados primários e se conseguir recursos adicionais, penso que dentro de alguns anos se verá o impacto na redução da mortalidade.

Vê diferenças entre o atual governo e o anterior?
Não consigo comparar governos. Olho para as reformas. Penso que ambos foram muito claros na reforma dos cuidados primários e o atual está muito determinado nesta questão da integração de cuidados. Muitas destas medidas vão trazer frutos. Uma das áreas em que é preciso apostar mais são os cuidados de enfermagem. Penso que esta reforma no sentido da integração de cuidados vai exigir mais cuidados de enfermagem e uma reorganização.

Tem gerado alguma polémica em Portugal essa discussão sobre a distribuição de competências. Esse caminho está a ser seguido na UE?
Sim. Há uma série de áreas em que isso está a ser feito.

Podem prescrever?
No âmbito do acompanhamento a doentes crónicos sim.

Por exemplo?
No tratamento da diabetes, no tratamento da asma, de doença pulmonar obstrutiva crónica. Claro que para fazer isto têm de receber formação e não estou a dizer que sejam eles a prescrever tudo, mas podem ter mais intervenção na gestão da doença.

Qual é a vantagem?
Haver menos pressão sobre os médicos e está demonstrado que os enfermeiros podem ser igualmente eficientes nessas áreas e mais custo-eficazes.

A discussão também tem sido sobre a necessidade de aumentar os vencimentos dos enfermeiros...
Claro, o próximo passo inclui isso mas também há uma questão de satisfação profissional que se consegue com uma melhor repartição das competências. Em muitos países são os pediatras que pesam as crianças ou lhes dão as vacinas… é claramente algo que o enfermeiro pode fazer. Os enfermeiros podem dar a vacina da gripe.

É o que já acontece em Portugal.
Mas em alguns países ainda não.Também podem intervir na prevenção. Por exemplo no rastreio do cancro do colo do útero, podem facilmente fazer uma citologia.

A resistência dos médicos tem sido comum noutros países?
Sim, mas se queremos ser sustentáveis, com todas as pressões que existem sobre o sistema, temos de aproveitar melhor não só os enfermeiros mas todos os profissionais. Temos de pensar fora da caixa, a começar pela inclusão do doente e da autogestão da doença. Muitas das coisas que fazemos, o doente pode fazer. A família do doente também, mas é preciso treino e mais literacia.

O Estado não devia também apoiar mais esses cuidadores informais?
Sim, não devemos usar estas pessoas de borla. E não estou a dizer que isto deve substituir o Estado, que deve assegurar os cuidados. Mas, nos casos em que as famílias o fazem, é importante apoiá-las dando-lhes competências e também uma fonte de rendimento.

Já há exemplos disso?
Tem havido algumas experiências, particularmente para as pessoas com incapacidade física permanente e que percebem muito bem as suas necessidades. A Holanda dá-lhes um subsídio para que possam, se quiserem, contratar um enfermeiro, por exemplo. Não defendo que isto seja feito noutros países e acho que a ideia de adaptar os cuidados às necessidades de cada doente, que está a ser seguida em Portugal, havendo como que navegadores dos doentes no sistema, é positiva. Temos de utilizar os profissionais de forma adequada: os médicos podem fazer muitas destas tarefas, mas queremos os médicos a fazer diagnósticos mais complexos.

Os médicos poderão defender que se contratem antes mais médicos…
Sim, e percebo, mas se outro profissional de saúde pode fazer as mesmas coisas de uma forma mais custo-eficaz e com os mesmos níveis de satisfação...

Mas é uma mudança histórica.
Não estou a dizer que os enfermeiros vão substituir os médicos. No fundo é uma mudança de paradigma como a dos cuidados de saúde primários. Eu era médico de família em Espanha e, no início da reforma, os doentes queriam ir ao hospital: ir ao centro de saúde era só para ter uma receita ou credencial. Hoje em dia muitos doentes preferem ir ao centro de saúde, os problemas são resolvidos, o médico até tem acesso a exames de diagnóstico. É a tal coisa do bidão: fazê-lo andar é difícil... Os doentes confiarem tanto nos médicos como nos enfermeiros, os doentes confiarem tanto nos cuidados primários como nos hospitais…

No relatório alertam para a concorrência do setor privado, que tem desviado profissionais do SNS.
Esta é uma questão em que até existe algum paralelismo entre Portugal e Espanha. Também temos mutualidades para os funcionários públicos. O passo mais importante que Portugal deu foi parar de subsidiar esses sistemas que agora são financiados apenas pelos beneficiários.

Mas o que tem aumentado não são tanto os beneficiários da ADSE: temos mais pessoas com seguros e que usam o privado, até porque o SNS tem listas de espera e mais barreiras. Para ter uma consulta de dermatologia tem de esperar primeiro por uma no médico de família.
Portugal tem uma despesa direta em cuidados de saúde (out-of-pocket) acima da média. Penso que em parte será cultural e em parte fruto de haver listas de espera e problemas de acesso. Mas vamos a esse exemplo: muitos problemas dermatológicos podem ser resolvidos pelo médico de família e há mecanismos em que o médico tira uma fotografia e envia para o dermatologista. Se for suficiente, resolve o seu problema e não pagou uma consulta.

É uma questão de confiança?
E de perceções. É aquela ideia de que se tenho uma dor de cabeça tenho de ir ao neurologista: 99,9% das dores de cabeça não são tumores cerebrais. Claro que existem listas de espera e isto é um problema. Seria bom que Portugal fosse mais rico e tivesse mais recursos, mas o que vemos é que os recursos acabam por existir : são gastos pelas famílias. Também é um facto que os prestadores privados aumentam os vencimentos dos médicos. Não quero recomendar nada, mas uma sugestão seria pensar em como aumentar a eficiência do setor público para que as pessoas não precisem de ir ao privado.

Que medidas têm sido tentadas?
Alguns países como Espanha aumentaram os salários dos médicos no público para trabalharem mais horas, manhã e tarde. Isto diminui as listas de esperas.

Mas onde vai buscar o dinheiro?
É preciso debater. Em última instância, o dinheiro gasto em saúde vem da mesma pessoa: paga-me impostos a mim e eu pago ao médico ou paga diretamente ao médico indo ao privado. A questão é: podemos alterar esta despesa privada que é bastante elevada em Portugal para alguma forma de…

Impostos consignados?
É preciso explorar ideias de transmitir isto às pessoas: que o dinheiro é proveniente delas e, se for usado no sistema público, dá para tornar o sistema mais eficiente. E que as doenças sérias em Portugal são sempre tratadas pelo setor público. Muito financiamento vai para o setor privado para doenças menores, o que aumenta o acesso – e isso é importante para a população – mas não resolve a maior parte de carga de doença do país, que requer prevenção e cuidados. Não estou a recomendar nada, o que acho é que deve haver este debate de como transferir a despesa out-of-pocket para financiamento do setor público.

E medidas como a exclusividade?
Não se pode pedir exclusividade quando os salários são baixos. Mas se aumentar o rendimento e o relacionar com a produtividade, muitos médicos vão optar por ficar no sistema público porque gostam dele.

As estimativas sugerem que, com o envelhecimento e doenças crónicas, a despesa será bastante superior. Um serviço de saúde público e universal será sustentável quando hoje já tem dificuldades?
Tem sido sustentável, veja os gastos que o país tem tido apesar da relativa baixa despesa. E ainda há muitos ganhos em eficiência a atingir, reduzindo por exemplo o consumo de antibióticos.

Mas há países europeu que têm sistemas de saúde que não assentam só em prestadores públicos. Que modelo funciona melhor?
Defendemos a cobertura universal de saúde e que não deve haver copagamentos na hora do acesso, depois se o prestador é público ou privado não quero saber. É como o ditado: «não interessa se o gato é branco ou preto, o que interessa é que apanhe ratos». Há países onde o privado funciona bem e outros onde funciona mal, como acontece com o público. Tudo depende da regulação. O que acontece frequentemente em muitos países é que o setor privado seleciona os doentes com menor risco, os doentes mais fáceis, aqueles que querem ter um quarto mais confortável, nunca fica com os doentes mais dispendiosos.

Os doentes com VIH…
Ou os transplantados, ou os doentes com multimorbilidades… estes doentes nunca estão lá. Estes 10% da população que usam 80% dos recursos de saúde nunca estão a ser seguidos no privado. Portanto quer seja num sistema como na Bélgica em que o seguro universal de saúde tanto permite ir ao público como ao privado quer seja num sistema como o português, o que importa é que haja uma boa regulação.

Em Inglaterra, onde o sistema é público como o português, começa-se a falar de deixar de operar pessoas que não percam peso ou não deixem de fumar.
Isso é outra história. Uma coisa é cortar intervenções que não são eficazes. Outra é não oferecer serviços com base no comportamento das pessoas. Não é algo que esteja a avançar de forma sistematizada até porque tem implicações éticas. Se fores de uma classe socioeconómica mais alta e eu de uma classe mais baixa, tu deixas de fumar e eu não, podem culpar-nos da mesma maneira? A pressão que eu tenho em casa, a educação que eu tive, o rendimento, não pesará na decisão?

*O corporativismo na saúde bem dissecado.

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