E se parássemos de sobreviver?
O mais revolucionário
a fazer é: começar a parar. A melhor garantia da nossa sobrevivência
como espécie é pararmos de nos comportar como sobreviventes.
Já
foi dito por muitos, mas é preciso insistir e tornar em acções a
denúncia da incompatibilidade, que é de princípio, entre capitalismo e
sustentabilidade, entre um sistema que só se sustenta criando
desequilíbrios e a urgência de uma viragem ecológica para a regulação de
um equilíbrio.
Fala-se do antropocénico e com razão: impressiona o
registo geológico que a presença humana deixará no planeta Terra e
impressiona o contraste entre o tempo humano contado em anos, décadas e
séculos, e o tempo geológico contado em milhões de anos. Por aí se vê a
violência do desequilíbrio que a nossa existência significa para toda a
existência em redor. Mas fora esse efeito, sem dúvida útil para uma
urgente pedagogia da contenção, o antropocénico é apenas um estádio que
depressa será devorado pela compulsão para o crescimento.
Não
passarão muitos séculos até ocuparmos o sistema solar todo, como sucedeu
com os continentes, eventualmente musealizando a Terra, a ponto de não
ser inconcebível que esta se salve a troco de perigos sempre cada vez
mais vastos. Por isso, não deve ser o antropocénico a balizar a
discussão sobre a nossa existência desequilibrada (as categorias
geológicas não têm alcance suficiente), mas sim o que realmente nos move
de forma tão destrutiva: uma organização socioeconómica que nos coloca
sempre na posição sobrevivencial e que nessa posição justifica a
mobilização de todos para um processo de crescimento, que nada tem que
ver com o amadurecimento e a emancipação que se espera de pessoas
crescidas, mas com algo semelhante a uma doença cancerígena.
Para
compreender a contradição em que nos embrulhámos, planeta incluído, é
preciso desmontar criticamente ideias feitas, fortemente incrustadas num
senso-comum que tem muito mais de produzido do que de espontâneo.
A
primeira ideia feita é a de que o capitalismo é um sistema de
equilíbrio concorrencial, que confere uma justa oportunidade a quem quer
que tenha a vontade e a determinação de a apanhar. Esta perspectiva é
enganadora. No capitalismo são relevantes para a criação de
oportunidades de lucro os factores de inovação – mas ligados cada vez
mais à criação de novas necessidades, numa dinâmica global e intensiva
de consumo amplamente impulsionada pela mediacracia planetária
–, que nos fornecem a cada passo uma qualquer vantagem. Mas são sempre
vantagens transitórias, transitoriedade que compele à criação de novas
vantagens transitórias, num movimento de fuga para a frente e de
expansão.
Se no capitalismo a falta de inovação resulta em
fracasso é precisamente por se tratar de um sistema económico
incompatível com um equilíbrio concorrencial. Acesso diferenciado à
informação, à tecnologia, aos recursos são exemplos de ingredientes que
desequilibram a concorrência, criando uma oportunidade motivadora de
lucro. O desequilíbrio é pois o bem transitório a perseguir sempre,
porque gera lucro. E que deixando de ser perseguido determina a derrota
concorrencial. Os imperativos são: inova, cresce, ganha uma vantagem… ou
morre. Daí que o capitalismo não seja, por razões intrínsecas,
compatível com uma época de equilíbrio e de pós-crescimento que se torna
urgente fazer acontecer.
A segunda empenhada produção de
senso-comum a desmistificar tem que ver com a presunção de que nos
libertámos civilizacionalmente da lei da sobrevivência. Outra grande
ilusão. Apesar de toda a desnaturalização histórica dos humanos, que
conseguiram escapar à lei da sobrevivência no sentido mais literal que
preenche o quotidiano e é condição de existência de todas as outras
espécies, nós como espécie interiorizámos essa lei, através de um
simulacro que é a luta pela vida, a labuta, e que já não é exactamente a
da sobrevivência natural, no sentido de uma luta pelos recursos da
água, da comida e pela possibilidade da reprodução, mas a luta por
rendimento e statu quo, nossos intermediários do acesso a recursos de sobrevivência.
Daqui decorrem quatro consequências que deveríamos não querer.
Primeiro,
o centro da nossa vida continua a ser a sobrevivência. Mesmo aqueles
que estão em posições socialmente favorecidas, por fortuna ou dons, são
levados a escolher uma lógica de sobrevivência como sentido de vida. O
lazer, a preguiça, e todas as outras coisas que gostaríamos de fazer
ficam postas em posição secundária, antecâmara tolerada de uma retomada
da actividade dominadora.
Segundo, sobrevivemos sozinhos numa
espécie de solipsismo naturalizado da vida humana, como se fôssemos os
únicos seres realmente activos de um ecossistema artificial. O resto é
musealizado, tendência de fixar realidades num tempo-espaço inactivo,
por exemplo em parques e reservas naturais, com que temos um contacto
sem vida, apenas de memória de uma vida, conteúdo de programas de sábado
de manhã, da National Geographic ou similares.
Terceiro,
verdadeiramente não damos outro horizonte de existência às restantes
espécies além de um de sobrevivência das próprias espécies enquanto
tais. Esperamos do seu risco de extinção a justificação da nossa
migração da sobrevivência natural para a artificial e a justificação
para as proteger de consciência tranquila.
Quarto, induzimo-nos,
neste solipsismo sobrevivencial, não só a afastar os “outros” não
humanos que já só com aspas podem ser chamados assim, como a depender
deles cada vez menos, a transcendê-los.
Na proporção em que nos
isolámos numa lógica sobrevivencial exclusiva, e nela nos tomámos como
sujeitos únicos do mundo, dessubjectivámos tudo o resto, inactivámos
todos os “outros” do mundo, e perdemos o fio das relações com tudo o
mais no mundo e com o próprio mundo. Tornámo-nos pós-mundo.
O que
fazer? O mais revolucionário a fazer é: começar a parar. E a pergunta
revolucionária deve ser “porque continuamos a sobreviver?”, não no
sentido de a sobrevivência ser inverosímil e nos devermos perspectivar
em vias de extinção, mas sim no sentido de que a melhor garantia da
nossa sobrevivência como espécie é pararmos de nos comportar como
sobreviventes.
Somos induzidos a sobreviver quando deveríamos optar por
viver. Importaria que nos pensássemos não como já estando num processo
catastrófico, dentro de um cataclismo planetário, mas, tudo ao
contrário, como já estando na posse de todos os meios para deixar de ter
a sobrevivência como sentido de vida.
* Filósofo, Universidade da Beira Interior
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
16/11/17
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