17/11/2017

ANDRÉ BARATA

.





E se parássemos de sobreviver?

O mais revolucionário a fazer é: começar a parar. A melhor garantia da nossa sobrevivência como espécie é pararmos de nos comportar como sobreviventes.

Já foi dito por muitos, mas é preciso insistir e tornar em acções a denúncia da incompatibilidade, que é de princípio, entre capitalismo e sustentabilidade, entre um sistema que só se sustenta criando desequilíbrios e a urgência de uma viragem ecológica para a regulação de um equilíbrio.

Fala-se do antropocénico e com razão: impressiona o registo geológico que a presença humana deixará no planeta Terra e impressiona o contraste entre o tempo humano contado em anos, décadas e séculos, e o tempo geológico contado em milhões de anos. Por aí se vê a violência do desequilíbrio que a nossa existência significa para toda a existência em redor. Mas fora esse efeito, sem dúvida útil para uma urgente pedagogia da contenção, o antropocénico é apenas um estádio que depressa será devorado pela compulsão para o crescimento.

Não passarão muitos séculos até ocuparmos o sistema solar todo, como sucedeu com os continentes, eventualmente musealizando a Terra, a ponto de não ser inconcebível que esta se salve a troco de perigos sempre cada vez mais vastos. Por isso, não deve ser o antropocénico a balizar a discussão sobre a nossa existência desequilibrada (as categorias geológicas não têm alcance suficiente), mas sim o que realmente nos move de forma tão destrutiva: uma organização socioeconómica que nos coloca sempre na posição sobrevivencial e que nessa posição justifica a mobilização de todos para um processo de crescimento, que nada tem que ver com o amadurecimento e a emancipação que se espera de pessoas crescidas, mas com algo semelhante a uma doença cancerígena.

Para compreender a contradição em que nos embrulhámos, planeta incluído, é preciso desmontar criticamente ideias feitas, fortemente incrustadas num senso-comum que tem muito mais de produzido do que de espontâneo.

A primeira ideia feita é a de que o capitalismo é um sistema de equilíbrio concorrencial, que confere uma justa oportunidade a quem quer que tenha a vontade e a determinação de a apanhar.  Esta perspectiva é enganadora.  No capitalismo são relevantes para a criação de oportunidades de lucro os factores de inovação – mas ligados cada vez mais à criação de novas necessidades, numa dinâmica global e intensiva de consumo amplamente impulsionada pela mediacracia planetária –, que nos fornecem a cada passo uma qualquer vantagem. Mas são sempre vantagens transitórias, transitoriedade que compele à criação de novas vantagens transitórias, num movimento de fuga para a frente e de expansão.

Se no capitalismo a falta de inovação resulta em fracasso é precisamente por se tratar de um sistema económico incompatível com um equilíbrio concorrencial. Acesso diferenciado à informação, à tecnologia, aos recursos são exemplos de ingredientes que desequilibram a concorrência, criando uma oportunidade motivadora de lucro. O desequilíbrio é pois o bem transitório a perseguir sempre, porque gera lucro. E que deixando de ser perseguido determina a derrota concorrencial. Os imperativos são: inova, cresce, ganha uma vantagem… ou morre. Daí que o capitalismo não seja, por razões intrínsecas, compatível com uma época de equilíbrio e de pós-crescimento que se torna urgente fazer acontecer.
 
A segunda empenhada produção de senso-comum a desmistificar tem que ver com a presunção de que nos libertámos civilizacionalmente da lei da sobrevivência. Outra grande ilusão. Apesar de toda a desnaturalização histórica dos humanos, que conseguiram escapar à lei da sobrevivência no sentido mais literal que preenche o quotidiano e é condição de existência de todas as outras espécies, nós como espécie interiorizámos essa lei, através de um simulacro que é a luta pela vida, a labuta, e que já não é exactamente a da sobrevivência natural, no sentido de uma luta pelos recursos da água, da comida e pela possibilidade da reprodução, mas a luta por rendimento e statu quo, nossos intermediários do acesso a recursos de sobrevivência.

Daqui decorrem quatro consequências que deveríamos não querer.

Primeiro, o centro da nossa vida continua a ser a sobrevivência. Mesmo aqueles que estão em posições socialmente favorecidas, por fortuna ou dons, são levados a escolher uma lógica de sobrevivência como sentido de vida. O lazer, a preguiça, e todas as outras coisas que gostaríamos de fazer ficam postas em posição secundária, antecâmara tolerada de uma retomada da actividade dominadora.

Segundo, sobrevivemos sozinhos numa espécie de solipsismo naturalizado da vida humana, como se fôssemos os únicos seres realmente activos de um ecossistema artificial. O resto é musealizado, tendência de fixar realidades num tempo-espaço inactivo, por exemplo em parques e reservas naturais, com que temos um contacto sem vida, apenas de memória de uma vida, conteúdo de programas de sábado de manhã, da National Geographic ou similares.

Terceiro, verdadeiramente não damos outro horizonte de existência às restantes espécies além de um de sobrevivência das próprias espécies enquanto tais. Esperamos do seu risco de extinção a justificação da nossa migração da sobrevivência natural para a artificial e a justificação para as proteger de consciência tranquila.

Quarto, induzimo-nos, neste solipsismo sobrevivencial, não só a afastar os “outros” não humanos que já só com aspas podem ser chamados assim, como a depender deles cada vez menos, a transcendê-los.
Na proporção em que nos isolámos numa lógica sobrevivencial exclusiva, e nela nos tomámos como sujeitos únicos do mundo, dessubjectivámos tudo o resto, inactivámos todos os “outros” do mundo, e perdemos o fio das relações com tudo o mais no mundo e com o próprio mundo. Tornámo-nos pós-mundo.

O que fazer? O mais revolucionário a fazer é: começar a parar. E a pergunta revolucionária deve ser “porque continuamos a sobreviver?”, não no sentido de a sobrevivência ser inverosímil e nos devermos perspectivar em vias de extinção, mas sim no sentido de que a melhor garantia da nossa sobrevivência como espécie é pararmos de nos comportar como sobreviventes.

Somos induzidos a sobreviver quando deveríamos optar por viver. Importaria que nos pensássemos não como já estando num processo catastrófico, dentro de um cataclismo planetário, mas, tudo ao contrário, como já estando na posse de todos os meios para deixar de ter a sobrevivência como sentido de vida.

* Filósofo, Universidade da Beira Interior

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
16/11/17


.

Sem comentários:

Enviar um comentário