29/10/2017

SÍLVIA FERREIRA

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Contribuinte a tempo inteiro

A lei vem presumir que o contribuinte viu a notificação cinco dias depois de a receber através do serviço público de notificações eletrónicas (o sítio da Internet ou a aplicação móvel disponibilizada para o efeito).

O cidadão comum, durante o seu dia a dia, assume por diversas vezes o papel de contribuinte: quer seja no IVA que paga ao pequeno-almoço, nas portagens que paga a caminho do trabalho, ou no IMI (e agora também no AIMI) que paga pela casa à qual regressa ao final do dia. Todavia, o nível de compromisso do contribuinte com o Estado não vai ficar por aqui.

Com a criação do serviço público de notificações eletrónicas e da morada única digital, as notificações efetuadas para o domicílio fiscal eletrónico do contribuinte consideram-se efetuadas no quinto dia posterior à sua disponibilização.

Ou seja, a lei vem presumir que o contribuinte viu a notificação cinco dias depois de a receber através do serviço público de notificações eletrónicas (o sítio da Internet ou a aplicação móvel disponibilizada para o efeito) diminuindo o anterior período de 25 dias para as notificações feitas através da caixa postal eletrónica.

E interessa que tenha ou não visto a notificação? Muito pouco. Para que se afaste esta presunção, o contribuinte terá de provar que não viu a notificação por causa que não lhe seja imputável. Ou seja, terá de provar que não viu, não porque não quis, mas sim porque não pôde.

Nos dias da era digital, esta prova pode ser bastante complicada - não é fácil alegar que se estava num sítio sem rede e sem acesso à internet.

Mas esses sítios, para nosso bem, ainda existem. O que não pode existir é uma obrigação implícita que force o contribuinte a estar constantemente sob vigilância, sob pena de não saber, por um lado, que existe um processo não judicial iniciado contra si e, por outro, que está a decorrer o prazo que tem para se defender desse mesmo processo.

Porque o que está aqui em causa é precisamente o momento a partir do qual se começa a contar o prazo que o contribuinte tem para exercer a sua defesa.

Não queremos, contudo, afastar definitivamente toda e qualquer presunção de notificação, sob pena de impossibilitar a comunicação e agilização dos processos tributários.

Todavia, é necessário ponderar qual a importância de um processo tributário mais célere e qual a importância das garantias de defesa do contribuinte - ponderação que só em abstrato pode parecer difícil, uma vez que as garantias do contribuinte perante a Administração são de tal importância que estão consagradas na Constituição da República Portuguesa.

Não podem restar dúvidas de que, perante uma Administração Tributária dotada de todos os poderes que goza um órgão da administração do Estado, se deve dar prevalência à defesa do contribuinte que, reiteramos, não tem de estar contactável a tempo inteiro.

A solução pode originar casos perfeitamente absurdos: alguém que sofre um acidente de viação no dia em que recebe uma notificação e fica internado durante uma semana, quando sair do hospital, vai deparar-se com um prazo de defesa com menos dois dias. E o contribuinte, além de se preocupar com a sua recuperação, terá também de se preocupar em afastar a presunção de notificação.

Mas não podemos perder de vista que a presunção é uma criação legislativa que permite ao órgão que aplica o direito conhecer aquilo que, de outro modo, não conheceria. E, como todas as criações, tem de ser razoável e ponderada, sob pena de cairmos num mundo de perfeita fantasia, onde só um supercontribuinte poderia exercer atempadamente os seus direitos.

* Advogada na Macedo Vitorino & Associados

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
26/10/17

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