02/10/2017

RICARDO SÁ FERNANDES

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Imunidade diplomática: o caso
do vice-presidente de Angola

No direito internacional há cada vez menos espaço para imunidades absolutas, as quais se devem compatibilizar com um quadro que permita uma perseguição eficaz a crimes como o de corrupção.

1. Em Fevereiro deste ano, o Ministério Público acusou o então vice-presidente de Angola, engenheiro Manuel Vicente, de crimes de corrupção activa, branqueamento de capitais e falsificação de documento, uma vez que, em conluio com outras pessoas, teria actuado com vista a obter, da parte do então procurador da República Orlando Figueira, despachos favoráveis em inquéritos criminais em que estaria a ser investigado, contra o recebimento de uma contrapartida pecuniária de mais de 700 mil euros e ainda de outras vantagens, traduzidas na celebração futura de contratos de prestação de serviços a favor deste. Seguiu-se a pronúncia dos arguidos e a remessa dos autos para julgamento, cujo início está previsto para 2018.

2. Os arguidos gozam da presunção de inocência e o tema deste artigo não é a sua culpabilidade ou inocência em relação aos factos que lhes são imputados, matéria sobre a qual não tenho qualquer opinião (nem aqui a diria, se a tivesse). É ainda do domínio público que existem outros tópicos processuais que as defesas têm levantado, os quais também não são objecto da minha reflexão.

3. O que me leva a vir ao debate público tem a ver com o estatuto da imunidade diplomática de titulares de altos cargos políticos, neste caso à luz da situação particular daquele que até há dias era o vice-presidente de Angola.

4. O Governo de Angola terá apresentado uma nota verbal ao Governo português, em que terá suscitado a violação da imunidade diplomática do seu então vice-presidente, a que o Governo português ainda não terá respondido. Paralelamente, alguma comunicação social tem dado uma grande ênfase a esta tese, sobretudo os jornais Sol e i, que desde o último fim-de-semana sobre ela têm feito sucessivas manchetes: “Relações com Angola estão por um fio”, “Luanda acusa Portugal de violar Lei Penal Internacional, tratados da CPLP e Acordos de Cooperação Bilateral”, “o Sol divulga requerimento da defesa que arrasa Ministério Público”, “Governo angolano ameaça romper relações diplomáticas em Portugal”, “Executivo de Angola enviou nota de repúdio ao MNE português, onde promete salvaguardar a sua soberania, independência nacional e dignidade, em função do contínuo acto internacional ilícito praticado pela República Portuguesa”, “Tensão aumenta entre Portugal e Angola”, “150 mil portugueses em risco de terem de regressar se houver cortes de relações diplomáticas”, “Marcelo preocupado com relações com Angola”.

5. É manifesta a enorme relevância deste debate, não só pela sua importância para o direito internacional, como pelo seu eventual reflexo nas relações entre Portugal e Angola. Foi isso que me levou a procurar ter acesso, o que obtive, à acusação, à argumentação da defesa e ao principal parecer em que esta se funda (todas peças de elevada craveira técnica e de grande probidade intelectual). Entendi que tinha o direito e senti o dever de me pronunciar sobre o assunto, até porque ele se relaciona com a avaliação dos instrumentos admissíveis no combate à corrupção, que é, a meu ver, um tema crucial do nosso tempo histórico, em particular para Portugal e para Angola.

6. E a primeira coisa a dizer é que a questão não é de resposta fácil, pelo que devemos fugir de respostas precipitadas que nos desviam daquilo que conta para a solução. Enquadrando a minha posição, adianto já que, a meu ver, o problema se coloca na verificação, ou não, da existência de um costume internacional que dê cobertura à imunidade diplomática reclamada. É que, na verdade, não há convenções internacionais, nem convenções bilaterais, nem quaisquer tratados que garantam a imunidade diplomática de que o Estado de Angola se quer prevalecer em relação ao seu ex-vice-presidente.

7. A Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 1961, veio estabelecer – na linha daquilo que já era um costume internacional consolidado – o princípio de que os agentes diplomáticos acreditados gozam de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador, estatuto de que também beneficiam os membros da sua família, desde que não sejam nacionais (de que tivemos o recente exemplo ocorrido com os filhos do embaixador iraquiano). Essa imunidade não isenta o agente de um eventual julgamento na jurisdição do Estado acreditante, o qual, de resto, pode renunciar à imunidade conferida aos seus agentes diplomáticos. Mas, não acontecendo essa renúncia, é incontroverso o entendimento de que efectivamente o Estado acreditador – ou seja, o Estado onde o agente diplomático está colocado – deve respeitar tal imunidade, que, ao longo da História, tem sido tida como fundamental para garantir a segurança internacional e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações.

8. Mais tarde, em 1969, foi celebrada, em Nova Iorque, a Convenção sobre Missões Especiais, que consagra igualmente a imunidade penal dos representantes de um Estado em missão noutro Estado, incluindo todos os membros do staff diplomático que a integra, matéria sobre a qual também já existia inequívoco costume internacional, uma vez que seria incompreensível, à luz da lei internacional, que aqueles que, numa acção diplomática, se deslocam em missão a outro Estado pudessem ser objecto, durante essa deslocação, de uma investigação criminal ou de quaisquer actos que pudessem pôr em causa a sua liberdade de movimentos.

9. Entre Portugal e Angola existem acordos bilaterais de cooperação jurídica e judiciária; por outro lado, os Estados-membros da CPLP celebraram igualmente uma Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal. Nesse âmbito, foram estabelecidas algumas prerrogativas e privilégios, mas não existe qualquer regra relativa à imunidade diplomática da jurisdição penal de titulares de cargos políticos. Por outro lado, o que a Constituição de Angola disponha acerca deste item – ou seja, acerca da imunidade dos seus próprios dirigentes políticos – só se aplica em Angola, não tendo o Estado português, ou qualquer outro, de respeitar esse estatuto, definido por lei nacional, a qual, por natureza, não se pode impor à jurisdição de outro Estado.

10. Pelo exposto, ao contrário do que alguma comunicação social tem divulgado, aquilo que está em cima da mesa não é um problema de violação de convenção internacional, de acordo bilateral, de tratado internacional ou da lei angolana, porque o tema fundamental se circunscreve à avaliação da existência, ou não, de um costume internacional que garanta ao então vice-presidente de Angola a imunidade reivindicada. De resto, o parecer de Reis Novais e Fidalgo de Freitas, em que se estriba a defesa de Manuel Vicente, coloca o assunto exactamente sob a óptica do direito internacional público costumeiro.

11. Neste campo, há um único dado pacífico em matéria de costume internacional: é o da imunidade dos chefes de Estado (conceito que se alargou de forma a também abranger os chefes de Governo), quanto aos actos por si praticados, quer a título oficial, quer na sua esfera privada, a qual permanece enquanto exercerem as funções de chefe de Estado e subsiste, mesmo depois da cessação de funções, mas somente quanto aos actos efectuados no exercício das funções oficiais. É a solução reconhecida pelo prestigiado Instituto de Direito Internacional, na Sessão de Vancouver de 2001.
Tal imunidade apenas conhece excepções, também já consagradas na lei internacional, relativamente à prática de crimes internacionais (crimes contra a humanidade, crimes de guerra, etc), onde se aceita a jurisdição penal de tribunais internacionais, mesmo relativamente a chefes de Estado em exercício de funções (por exemplo, o presidente sudanês Omar Al Bashir).

Destarte, há igualmente precedentes relativamente à admissão da jurisdição de tribunais nacionais quanto a crimes desta natureza, pelo menos nos casos em que os chefes de Estado já deixaram de exercer as suas funções (são sobejamente conhecidos os casos de Pinochet, avaliado pela inglesa Câmara dos Lordes, e de Noriega, que os EUA não reconheceram como chefe de Estado de jure).

12. Fora a situação dos chefes de Estado e chefes de Governo, não se poderá falar de um costume internacional consolidado relativamente a uma imunidade geral de jurisdição penal para altos titulares de cargos políticos (a não ser, naturalmente, quando integrados em missões oficiais em viagens ao estrangeiro, como acima referimos).

13. Neste contexto, o principal argumento a favor de Manuel Vicente resulta de um célebre caso, julgado no Tribunal Internacional de Justiça, que opôs a República Democrática do Congo e a Bélgica. Em 2000, um tribunal de Bruxelas emitira um mandado de detenção contra o então ministro dos Negócios Estrangeiros do Congo, senhor Yerodia, sustentado na sua lei nacional que sanciona as violações graves do direito internacional humanitário, a qual conferia aos tribunais belgas jurisdição em relação a crimes internacionais, independentemente da existência de conexões territoriais e/ou de nacionalidade entre o crime e o Estado belga. Yerodia era acusado de crimes previstos na Convenção de Genebra e de crimes contra a humanidade, o que teria a ver com os seus discursos de ódio, proferidos contra os tutsis, de que resultaram centenas de assassinatos e detenções arbitrárias.

Em 14 de Fevereiro de 2002, o Tribunal Internacional de Justiça declarou que o mandado de detenção contra Yerodia não respeitava a imunidade de jurisdição criminal de que seriam beneficiários os ministros dos Negócios Estrangeiros em exercício de funções. O tribunal entendeu que essa imunidade abrangia tanto actos praticados a título oficial como privado, uma vez que a imunidade não salvaguarda apenas a dignidade da função de representação do Estado, mas a total liberdade e independência de quem o representa.

É basicamente a partir deste importante precedente que Manuel Vicente reclama a sua imunidade, uma vez que defende que o mesmo estatuto se aplica aos titulares de altos cargos políticos, como aquele em que ele estava investido, como vice-presidente de Angola.

14. Contudo, julgo que essa jurisprudência não se aplica a Manuel Vicente. Desde logo, porque aquela decisão do Tribunal Internacional de Justiça não permite a conclusão do reconhecimento da existência de uma regra consolidada de direito costumeiro quanto a uma imunidade absoluta da jurisdição penal a favor dos ministros dos Negócios Estrangeiros. Não só por causa dos veementes votos de vencido, que o impugnam, como ainda pelo teor das declarações de voto de alguns dos juízes que votaram favoravelmente o acórdão, onde isso mesmo é sublinhado, pelo que, em rigor, o que tais juízes contestaram foi a emissão do mandado de detenção, na medida em que ele afectava a liberdade de circulação do ministro dos Negócios Estrangeiros do Congo.
Mas sobretudo porque a situação dos ministros dos Negócios Estrangeiros não é equiparável ao cargo que Manuel Vicente ocupava.
Aliás, no caso do ministro congolês, o tribunal aceitou o estatuto de imunidade atendendo às funções diplomáticas exercidas e à circunstância de, nas Convenções de Viena de 1969 e 1986 sobre o Direito dos Tratados, se prever que, a par dos chefes de Estado e do Governo, só aos ministros dos Negócios Estrangeiros é reconhecida, sem necessidade de apresentação de plenos poderes, uma autoridade própria para a execução de todos os actos relativos à celebração de tratados. Ora, o vice-presidente de Angola não é titular dessa autoridade, nem de nenhuma outra de natureza diplomática. É certo que lhe cabe substituir o chefe de Estado nas suas ausências e impedimentos, mas, assim sendo, só se justifica que goze de imunidade durante os períodos de substituição, não havendo regra costumeira internacional que estabeleça uma imunidade de jurisdição penal a favor dos substitutos de chefes de Estado ou de Governo (fora daqueles períodos, é claro).

15. Não podemos esquecer que a doutrina e a jurisprudência internacionais são categóricas no sentido de que a imunidade de jurisdição penal não é conferida para servir interesses pessoais, mas apenas enquanto instrumento de garantia de independência daqueles que, em cada momento e em cada Estado, estão investidos na sua representação internacional, e somente na medida excepcional em que isso seja necessário para assegurar aquele fim. Na evolução do direito internacional há cada vez menos espaço para imunidades de jurisdição penal absolutas, as quais se devem compatibilizar com um quadro que permita uma perseguição eficaz aos crimes muito graves, como acontece com a corrupção, ademais quando está em causa a alegada compra de favores de um magistrado de outro Estado, a fim de salvaguardar interesses privados.

16. Em qualquer caso, desde que, em 16 de Setembro, Manuel Vicente deixou de ser o vice-presidente de Angola (cargo actualmente ocupado por Bornito de Sousa), o problema está ultrapassado. É que não há qualquer dúvida de que, mesmo a ter existido, a imunidade em discussão cessou nesse instante. Não há quaisquer vozes dissonantes quanto ao entendimento de que essa imunidade não se aplica a quem já não é titular do cargo que a determina e em relação aos actos praticados fora de funções oficiais, como inequivocamente acontece com os factos imputados a Manuel Vicente. De resto, segundo a acusação, a congeminação da alegada acção criminosa deu-se até enquanto ele era presidente da Sonagol e antes mesmo de ser empossado como vice-presidente de Angola.

17. A situação só se alteraria se Manuel Vicente viesse a ser designado para ministro dos Negócios Estrangeiros ou cargo equivalente. Aí, sim, voltaríamos ao debate inicial. Mas não creio que João Lourenço, que, no seu discurso de posse, sublinhou a importância decisiva da luta contra a corrupção, cometesse esse erro político, que ensombraria gravemente o seu mandato.


IN "OBSERVADOR"
29/09/17

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