A política do boato
Já lá vai o tempo em que se podia dizer que
algo sem a menor base de verosimilhança, sem o menor fundamento, mais
cedo ou mais tarde, destruiria a credibilidade dos seus mentores. Pelo
menos, faria que caíssem no ridículo e que, na melhor das hipóteses,
meia dúzia de pessoas adeptas de teorias da conspiração continuassem a
acreditar neles. O facto é que vivemos na era do Infowars do Alex Jones,
onde se ouvem as mais delirantes mentiras e teorias que são
religiosamente seguidas por milhões de americanos e apadrinhadas pelo
próprio presidente dos Estados Unidos da América.
Há
aqui, no entanto, dois níveis que têm de ser separados. O primeiro diz
respeito à existência de gente disposta a acreditar num conjunto de
patranhas por estas porem em causa realidades que não lhes agradam ou
por pensarem que mentir em algumas coisas ajuda à vitória de uma causa
que consideram justa. O segundo relaciona-se com responsabilidade
política. Com o dever do político de não levantar suspeitas sem bases
sólidas, de não promover boatos ou de não rejeitar o contrato implícito
que tem com os cidadãos não inventando realidades paralelas. Mais, de
ser o primeiro travão a teorias da conspiração, mesmo que estas lhe deem
conjunturalmente jeito. Um político não inventa realidades, trabalha
para transformar a realidade.
Em
Portugal, ainda não temos gente do género do Alex Jones nem sequer
parecida. O que vai crescendo é uma espécie de colunismo de táxi 2.0,
rapazes e raparigas que estão a passar do discurso populista para uma
coisa mais sofisticada. Esta semana li uma crónica a defender que havia
uma gestão política do número de mortes da catástrofe de Pedrógão e
outra a dizer que se andava a brincar à contagem de cadáveres. Tudo isto
sem que se tenha percebido em que é que se baseavam para terem escrito o
que escreveram. Enfim.
Tenha a infeliz
história da lista de mortes de Pedrógão sido iniciada por uma manchete
infeliz - contrariada, aliás, pela notícia absolutamente correta -,
tenha havido órgãos de comunicação a dar ouvidos e imenso tempo de
antena a alguém que se lembrou de dizer coisas sem que tenha havido o
mínimo esforço de esses mesmos media em investigar minimamente a
história e a pessoa, tenha sido promovida por colunistas do taxismo 2.0,
o PSD e o CDS (que foi a reboque) portaram-se de uma forma, pura e
simplesmente, miserável. Miserável é pouco: não há adjetivos para
qualificar quem cavalga politicamente delírios, ainda por cima dos que
metem mortes em catástrofes.
É que uma
coisa são possíveis erros da comunicação social, outra é decidir fazer
batalha política sem ter o mínimo cuidado em verificar se há base para
acusar quem quer que seja, sem a mais pequena preocupação em perceber se
há de facto uma réstia de assunto, chegando a um ultimato patético.
Nunca
julguei ser possível que os responsáveis pelo partido mais votado pelos
portugueses levantassem uma suspeita gravíssima sem o mais pequeno
fundamento, sempre pensei que o partido que é corresponsável pelo regime
só tendo conhecimento de factos muitíssimo graves pusesse em causa o
bom nome de instituições democráticas e abandonasse o recato devido numa
situação que mexe com sentimentos profundos. O PSD decidiu realizar a
segunda parte da comédia "Há petróleo no Beato" mas desta vez com
cadáveres. Não fosse isto tudo de uma enorme gravidade e
irresponsabilidade, ainda se foi mais longe: depois de não restar a
mínima dúvida de que não havia mais listas de mortes, ainda houve a
total falta de vergonha de dizer que o PSD foi o responsável por acabar
com o clima de suspeição que estava a grassar por todo o país. Mais ou
menos como se dizer: nós legitimamos o delírio de que as autoridades e o
governo escondiam mortes, nós alimentámos essa ideia e agora
congratulamo-nos por as histórias que andámos a promover, e para as
quais não tínhamos o menor indício, se terem provado falsas.
No
fundo, tivemos uma reedição da tese dos suicídios. Também não havia
qualquer base factual para se falar de suicídios provocados pela
catástrofe e mesmo assim o líder do PSD não teve o mínimo pudor em
lançar essa atoarda. A diferença foi que houve um desmentido poucas
horas depois, não o tivesse havido e ainda teríamos o PSD a pedir uma
reunião no Parlamento para se proceder a averiguações sem que houvesse o
menor indício para tal que não uma historieta soprada por um qualquer
irresponsável.
O PSD podia fazer
oposição. Podia apontar as já evidentes falhas do governo na condução do
processo pós-Pedrógão, podia e devia pôr em causa o Ministério da
Educação na questão das matrículas no ensino público, podia questionar a
fragilidade do governo na resposta ao assalto de Tancos, podia explorar
o mundo de contradições e a evidente incapacidade da geringonça de se
entender em todas as questões relevantes e que deixa o país mais uma vez
adiado e sem fazer as reformas necessárias - a reforma das florestas e a
segurança social, são apenas dois exemplos flagrantes. Mas não, os
dirigentes do PSD preferem entrar numa deriva que insulta a sua memória e
o seu património promovendo o candidato autárquico Ventura que diz que
"vivemos num marasmo há quarenta anos" e campanhas que promovem boatos e
realidades paralelas.
Se o plano é
deixar o país entregue a esta ou a outra geringonça por muito tempo, os
dirigentes do PSD estão a fazer um bom trabalho.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
30/07/17
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