20/08/2017

MARIA JOSÉ MELO

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O Filipa e a escola pública

Portugal só será realmente um país civilizado quando existir consciência cívica por parte de todos os cidadãos. Foi esta visão que adquiri no Liceu D. Filipa de Lencastre e me acompanhou toda a vida.

Frequentei o Liceu D. Filipa de Lencastre, no Bairro do Arco do Cego, nos anos 60 e meados dos 70. Morava na área deste liceu, na zona entre o Areeiro e a Alameda D. Afonso Henriques. Ia para o liceu e vinha para casa a pé, todos os dias.

 Este era, sem dúvida, um dos liceus de referência, frequentado, na maioria, por meninas da classe média e média alta, havendo também algumas alunas que pertenciam a um estrato social desfavorecido, mas a quem fora atribuída uma bolsa de estudo, visto que mostravam empenho e, consequentemente, um bom aproveitamento.

 Lembro-me de uma colega, que fez parte da minha turma durante cinco anos, e que se enquadrava na situação de bolseira. Lembro-me, ainda, que tivemos que lhe ensinar os rudimentos da higiene corporal, pois ela desconhecia até a existência de desodorizantes. Completou o ensino liceal, tirou uma licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa e soube que se tornou tradutora na Comissão Europeia.

O corpo docente do liceu era competente e o ensino de qualidade. Havia rigor, as alunas eram estimuladas a estudar, aprendia-se, e quem não tivesse aproveitamento reprovava. As salas de aula tinham as antigas carteiras de madeira, que tínhamos de deixar impecavelmente limpas no fim do ano lectivo; um estrado com uma secretária para a professora, de onde era possível avistar toda a turma; e um quadro de ardósia preta, onde se escrevia com giz. Havia um ginásio equipado com todo o material para praticar ginástica e, num piso superior, à volta do ginásio, uma pista para atletismo. Também se praticava voleibol e basquetebol. Na hora do recreio, frequentávamos a sala onde se situavam o bar e as mesas de ping-pong. Existia também um pátio ao ar livre, onde se jogava badmington, à macaca, ao elástico e conversávamos.
As professoras do liceu eram estimadas, atribuía-se importância ao respeito e à disciplina. O ensino era tradicional, autoritário, centrado na professora. Porém tive várias professoras que usavam uma metodologia apelativa, para a época, e tinham uma relação bastante próxima com as alunas. Um número menor de professoras, especialmente aquelas de idade mais avançada, manifestavam sinais de que já não tinham aptidão para leccionar. Lembro-me de uma professora de Ciências Naturais que se reformou, com 70 anos no ano em que me leccionou a disciplina, e que era um “terror”…
(Um parêntesis relacionado com este assunto: actualmente, o aumento da idade da reforma coloca sérios problemas, pois os professores de idade superior a 60 anos estão exaustos devido aos requisitos da profissão docente, cada vez mais exigentes.)
Prosseguindo o meu relato, lembro com muito carinho outras professoras, entre elas a de História, que promoveu a curiosidade pela disciplina, em especial, pelas civilizações antigas, assim como a directora de Ciclo, com quem tínhamos “Arte de Dizer”, lendo e declamando poemas e textos diversos de autores portugueses, acontecimentos que deixaram marca na minha personalidade e gosto por aprender.
Regozijo-me por ter frequentado o Liceu Filipa não só pela formação que me foi dada, mas também porque estava situado próximo da minha casa e da das minhas colegas e amigas.
Ultimamente instaurou-se a polémica da prática fraudulenta das “moradas falsas” dadas pelos pais e do direito/liberdade de escolha da escola a que os filhos devem ter acesso.
Alguém escreveu que “as moradas falsas” são uma realidade desde sempre, o que atesto como verdadeiro, pois sempre presenciei tal ocorrência, o que não significa que com ela concorde. Penso que a prioridade de escolha pela área da residência é a mais simples, justa e cómoda para os alunos. Alguns alunos são ainda muito novos para usarem o transporte público e, quando adolescentes, é de igual modo prejudicial, pois perdem tempo na deslocação, causando atrasos desnecessários, assim como outros tipos de desconforto.
Também foi alegado, por outrem, que “a associação rígida entre residência e acesso à escola tem efeitos perversos, podendo contribuir para o aumento das desigualdades escolares e sociais”. Esta afirmação parece-me despropositada. Actualmente, a população do território nacional já é bastante diversificada e multicultural. No centro de Lisboa existem habitantes de diferentes estratos sociais e culturais, embora tal se verifique com maior incidência na periferia. Cabe pois à escola estabelecer princípios e actuação adequada para que todos os alunos ambicionem alcançar um bom aproveitamento e interiorizem os valores essenciais para conviverem de modo saudável na sociedade. Os pais e encarregados de educação deverão contribuir para isso, colaborando estreitamente, como aliados, com a instituição Escola.
Nunca mais voltei ao Liceu D. Filipa de Lencastre desde 1974, ano em que terminei o 7.º ano, hoje apelidado 11.º ano. Mas fui professora, durante quase 38 anos, em escolas da área da Grande Lisboa, escolas estas com uma diversidade discente enorme, quer ao nível étnico, quer ao nível sócio-económico e cultural.
Num programa televisivo este tema foi também abordado, tendo dois dos comentadores tecido considerações sobre a questão do liceus Filipa e Pedro Nunes. Por um deles foi apontado que frequentou o Filipa, simplesmente durante uma semana, e que “era um quequeiral do pior”, “que escorria quequeirismo pelas paredes”; a outra comentadora afirmou que “a escola é o lugar menos igualitário que há” e falou de “bullying”, dizendo “o primeiro ‘bullying’ é um ‘bullying’ de diferença social”. É de lamentar que o outro comentador que frequentou a Escola Secundária de Linda-a-Velha, onde leccionei onze anos, com uma mescla de população oriunda da classe média e africana que habitava o “bairro de barracas” da Pedreira dos Húngaros, não se tenha manifestado nem referido os episódios de “bullying” que aí tinham lugar. Talvez não seja politicamente correcto! Mas posso nomear alguns: difamação e perseguição a alunos filhos de professores; cenas de pancadaria; ataques ao porteiro; extorsão de dinheiro; roubos de objectos pessoais, vestuário e calçado dentro da escola e na área envolvente – alunos a quem roubavam os blusões Duffy e chegavam descalços a casa, pois usavam ténis de marca ou sapatos de vela.
É evidente que quando eu andava no Filipa, antes de 1974, o problema da discriminação pelo vestuário não se colocava, uma vez que todas as alunas usavam uma bata com o emblema da cor do ano que frequentavam. E nos outros liceus acontecia o mesmo, podendo ser diferente a cor ou o estilo da bata. Nas escolas privadas, normalmente, os alunos usam um uniforme. É bastante curioso e até contraditório que, no pós 25 de Abril, se tenha abolido essa prática, em nome da liberdade, abolição com a qual os senhores comentadores certamente concordam, como se tal tivesse um carácter “fascista”, e agora se venha invocar que existem desigualdade e discriminação na escola relacionadas com o modo de vestir.
O vocábulo “igualdade” tem um cariz idealista e ao mesmo tempo pérfido.
Penso que todos desejaríamos que os habitantes deste globo terrestre não morressem à fome ou por doenças que se propagam devido às más condições de vida, que todos tivessem acesso à escola, medicamentos e a um bom nível de vida. Porém, a própria Natureza provoca a desigualdade: desde a aparência física à capacidade intelectual; a sociedade contribui para o mesmo: desde o país em que se nasce até à classe social a que se pertence; o indivíduo também desempenha o seu papel pelas escolhas que faz em relação ao seu modo de vida e objectivos que traça.
Assim, a única forma de minorar essa desigualdade será pela frequência de uma escola que faculte um ensino de qualidade. Deve ser exigido a todos os intervenientes da comunidade educativa, sem excepção ou contemporização, o contributo para o sucesso, através da responsabilização individual e cumprimento rigoroso das regras que promovam um ambiente de respeito mútuo para uma aprendizagem efectiva.
Portugal só será realmente um país civilizado, quando existir uma consciência cívica por parte de todos os cidadãos e essa consciência cívica deve ser forçosamente veiculada na Escola.
Foi esta visão que adquiri, afortunadamente, no Liceu D. Filipa de Lencastre e que me tem acompanhado por toda a vida profissional e pessoal.
*Professora
IN "OBSERVADOR"
17/08/17

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