09/07/2017

RAQUEL SEREJO MARTINS

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A inquestionável 
urgência dos telegramas

Os dias iguais, indistinguíveis, foscos, baços, desbotados, amarelos, todos, tantos, como se chineses, porque não Sábado, não Domingo, não Segunda-feira, iguais

Os dias iguais, indistinguíveis, foscos, baços, desbotados, amarelos, todos, tantos, como se chineses, porque não Sábado, não Domingo, não Segunda-feira, iguais.

Que dia é hoje?

Dias feitos apenas de horas.

Como se os dias não fossem feitos de horas!

Sabe as horas ao minuto, ao segundo, sempre.

Dorme com relógio. Toma banho de relógio.

Tem, para o relógio, um pilha suplente na gaveta da mesinha de cabeceira, na gaveta do móvel da cozinha, na gaveta da secretária no trabalho, no cacifo do balneário do campo de futebol.

O seu Domingo é Terça-feira, um Domingo com a duração de quatro horas, banho incluído e duas mini’s.

Terça-feira, o dia de jogo da bola com os colegas da escola primária.

Ainda são amigos.

Ainda jogam à bola.

Ainda moram no mesmo bairro, o bairro maior porém o mesmo.

As vidas iguais, indistinguíveis, foscas, baças, desbotadas, amarelas.

Tem um relógio suplente, dois empregos, dois filhos para sustentar, a mulher desempregada, a mãe doente, a sogra a viver debaixo do mesmo tecto.

Tudo o que podia correr mal correu mal.

E claro que sabe que podia ser pior.

As coisas.

Que coisas?

A vida, pode sempre correr pior.

Às vezes corre, de facto.

Quando joga à bola não corre, fica à baliza, incomoda-se menos, cansa-se menos.

Sente-se cansado.

A verdade é que nunca gostou de jogar à bola.

Ia jogar a quê e com quem? E a pergunta não tem resposta.

Às vezes corre, tem de correr, os pés descompassados, não por gosto ou desporto, mas em fuga de mandíbulas caninas fiel e exclusivamente amigas dos donos das portas que guardam.

Claro que a vida podia ser pior!

Podia ter perdido a mãe, a mulher desempregada e diabética, o dobro dos filhos e um gago, um coxo, um vesgo, um burro, a mesma sogra em casa, o cão com sarna, o gato sem dentes, só um emprego.
Carteiro ou mecânico, fica indeciso sobre qual manter.

Como carteiro, das 9:00 às 15:00:

DETESTA correr à frente de cães, de dias de chuva, de sapatos novos.

GOSTA, mais que gosta, adora, entregar cartas portadoras de notícias trágicas, de preferência a pessoas que não saibam ler, uma espécie em extinção.

Em regra, as notícias más chegam por telegrama, que são necessárias poucas palavras para explicar uma desgraça.

São coisa de urgência!

Pedala num voo, não pedala, vai de mota, os cães a correr atrás da mota, para entregar os telegramas.
E urgência nenhuma, 90% das vezes o caso está morto, assim que, apenas a tempo do funeral e de umas palmadinhas nas costas que propina com carinho e para consolo próprio, porque naquele momento, olha para o relógio, olha para o destinatário identificado no envelope devidamente selado e sem excesso de peso, nome, morada, código postal, país, e pensa, se a felicidade medida de 1 a 10, nesse exacto momento o destinatário da epístola um 2, enquanto ele um 3, triste e permanente.

Como mecânico, 15:00 às 21:00:

NÃO GOSTA do fato macaco, reconhece que com o fato vestido tem atitudes de símio, o coçar as partes, o cocuruto, uma vontade inexplicável de bananas, que se contém de comer, o que mais lhe atiça a vontade, maldito fruto proibido, atendendo à exagerada propensão dos seus intestinos para a prisão de ventre, estado ou situação que o obriga a ler o jornal desportivo, de fio a pavio, sentado na casa de banho, como se ele O Pensador de Rodin. Cubículo que pelo menos tem uma janela e onde consegue ouvir o canário da vizinha.

Parece que está no campo!

Sente apenas falta do barulho de um grilo, talvez de uma cigarra, contudo há bandas sonoras piores. E irrita-se só de pensar no filho da mesma vizinha a tocar, a esbardalhar será verbo mais adequado aos gestos, a guitarra que lhe ofereceram no Natal.

GOSTA, porque o diverte, como se estivesse à baliza e conseguisse defender todas as bolas, das reacções dos clientes aos seus comentários.

Sempre os mesmos, que são necessárias poucas palavras para explicar uma desgraça.

Das reacções às palavras que utiliza nos diagnósticos, sempre reservados: este barulho não é normal; se for o que eu estou a pensar; é só substituir duas peças; com certeza mesmo só depois de abrir; vai precisar do carro para quando?. Às palavras e às onomatopeias que vai enfiando no meio das frases: Humm; Oops; Olé; e um SssssS, que faz estalar corações, como se vidros de janela e tempestade de granizo, órgãos em riste a um descuido do ataque, só de pensar no tamanho da despesa.

Que conste que nunca enganou um cliente, que é uma pessoa séria, que se não fosse tão sério talvez a vida mais leve, menos triste, melhor.

E perde-se, não se perde, foge da vida que leva, do tempo imparável no relógio de pulso.

Foge a imaginar outras vidas, às vezes para os outros, às vezes para si, sempre uma vida pior do que a vida que leva, e pensa que podia ter perdido a mãe, a mulher desempregada e diabética, o dobro dos filhos…

Não é uma pessoa ruim, apenas procura conforto para a sua vida sem graça nas desgraças dos outros.
Às vezes questiona-se se é boa pessoa. Repete para si próprio que não é pecado imaginar, depois acrescenta o adjectivo, imaginar coisas más.

Pecado é fazer ou não fazer, dizia o senhor prior na homilia do Domingo que passou, como se as palavras do pároco lhe entrassem ouvidos adentro, como se não cumprisse o ritual à base de cotoveladas da mulher, ajoelha, levanta, senta, sob o constante olhar de desaprovação da senhora sua sogra, que nem na tropa as ordens lhe custavam tanto, como se enquanto o padre debitava a palavra do Senhor não o imaginasse, gordo como está, a estrebuchar derivado de uma trombose, que por sorte dois médicos na igreja, que por azar um ortopedista e um dentista, enquanto, de propósito, demora a decidir se a ambulância vai chegar a tempo ou urgência nenhuma.

E, enquanto estes pensamentos, um sorriso inexplicável, um consolo pequenino, coisa de segundos, por vezes minutos… até que alguém lhe pergunta onde é que está com a cabeça.

 IN "SÁBADO"
03/07/17

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