01/07/2017

MARIANA MORTÁGUA

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A desresponsabilização
 do Estado nas creches

As instituições particulares de solidariedade social (IPSS) têm certamente um lugar na sociedade, e muitas têm um trabalho meritório, chegando a lugares que o Estado não alcança. No entanto, nos últimos anos, talvez décadas, este papel de complementaridade das IPSS face ao Estado social tem vindo a ser pervertido. A tendência notou-se especialmente durante o Governo de Passos e Portas, mas é anterior. A Segurança Social demitiu-se de parte das suas funções, que entregou às IPSS, através de acordos de cooperação, que cobrem áreas diversificadas: creches, lares, apoio na pobreza ou na infância.

Esta transferência de poderes e responsabilidades tem vários problemas. Em primeiro lugar não é clara ou transparente. As IPSS não têm o mesmo grau de escrutínio ou obrigação de prestar contas que a Segurança Social. Em segundo lugar, tem muitas vezes subjacente a transformação da ideia de solidariedade e emancipação por uma visão caritativa e assistencialista. Esta transformação ficou clara quando o anterior Governo escolheu cortar no Rendimento Social de Inserção (RSI) para criar um programa de cantinas sociais. Em terceiro lugar, nem sempre é mais barata para o Estado. No caso das cantinas sociais, provou-se que o Estado gastava mais a pagar às IPSS pelo serviço do que se atribuísse o RSI diretamente a essas famílias.

Uma das áreas onde estes problemas são mais flagrantes é nas creches. Até hoje nenhum Governo foi capaz de garantir a construção de uma rede abrangente de creches públicas, apesar da sua absoluta necessidade no país. Em vez disso, o Estado contratualiza com as IPSS a prestação do serviço, pensando que estas deveriam priorizar o acesso das famílias mais carenciadas. Acontece que, apesar do Estado pagar 259euro por criança por mês (1200 milhões ao todo), as creches podem cobrar o preço que entenderem aos pais. Uma vez que não estão obrigadas a quotas quanto aos rendimentos das famílias, pode até acontecer que só aceitem crianças de famílias mais abastadas, cobrando-lhes todo o valor que já recebem do Estado, duplicando assim a receita. Para além de ser um mau uso de recursos públicos, é também um mau serviço público.

O problema não se resolve obrigando estas creches a acolherem apenas as crianças mais pobres. Isso geraria guetos. Mas também não é justo que as IPSS possam lucrar com um serviço que é, em última instância, pago pelo Estado, cobrando valores diferenciados aos pais. A resposta só pode mesmo ser, neste caso, a construção de uma rede pública de creches, gerida diretamente pelo Estado.

Mais uma vez, há um lugar para o terceiro setor, em particular as IPSS, nas respostas que a sociedades deve encontrar para diferentes necessidades sociais. Mas esse lugar não deve, em caso algum, ser o da substituição do Estado, ou da sua desresponsabilização na prestação de serviços públicos universais e igualmente acessíveis a todos. Ainda para mais quando, tanto a transferência de responsabilidades como a sua gestão pelas IPSS se faz sem clareza ou escrutínio.


IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
27/06/17

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