Que é feito do
“perfil do aluno”?
Não existe ainda o “Perfil” revisto de acordo com os pareceres
recebidos. O ministério queria alterar a educação a seu bel-prazer, mas
parece que o princípio da realidade se impôs ao do prazer.
Em 13 de Março passado terminou a discussão pública, suscitada
pelo Ministério da Educação, de um documento com o pomposo título “Perfil do Aluno para o Século XXI”. Escrevi sobre ele uma crónica no Público (“O novo PREC”),
na qual chamava a atenção para o perigo de mais uma reforma educativa,
que era, ao fim e ao cabo, o que estava a ser congeminado sob a égide do
tal documento. Defendi que deviam acabar as reformas educativas sempre
que o ministro mudava. Alunos, professores e escolas precisam acima de
tudo de estabilidade.
Uma sólida preparação de base nas disciplinas em que o saber humano
está desde há séculos distribuído, como o Português, a Matemática, a
História ou a Física, era o que eu esperaria para os alunos no final do
12.º ano, que desejavelmente iriam seguir para estudos superiores. Ora o
dito “Perfil” não reconhece a relevância dos saberes disciplinares,
pretendendo substituí-los por “competências”, definidas de forma vaga
como “combinações complexas de conhecimentos, capacidades e atitudes”
(p. 12). Temendo que os leitores não entendam, o documento ilustra as
“competências” com um boneco a cores, vindo da OCDE, que faz lembrar uma
trança. A palavra “competências” está omnipresente, aparecendo 54 vezes
ao longo das 14 páginas do texto. As competências preferidas são as
“competências-chave”, que são dez como no Decálogo.
O “Perfil” repete uma mão cheia de lugares comuns, alguns importados
da OCDE e outros nem isso. O que há de novo, ou sequer de substantivo,
em frases nada claras como, por exemplo, esta: “A educação permite fazer
conexões entre o passado e o futuro, entre o indivíduo e a sociedade,
entre o desenvolvimento de competências e a formação de identidades” (p.
7)? Ou estoutra: “a flexibilidade é instrumental para se dar a
oportunidade a cada um de atingir o perfil proposto, de forma coerente,
garantindo a todos o acesso às aprendizagens” (p. 8)? Entre os chavões
recorrentes estão, além das “competências” e do “perfil”, o
“desenvolvimento”/ “desenvolver” (40 vezes), a “consciência”/
“consciente” (17 vezes), a “sustentabilidade”/ “sustentável” (12 vezes) e
a “criatividade”/ “criativo” (12 vezes). Em contraste, a palavra
“exigência” só aparece três vezes enquanto a palavra “disciplinas” surge
uma única vez.
Mas o documento não se limita a repetir ideias feitas. Propõe-se
mudar o ensino. O Conselho Nacional da Educação salientou que o “Perfil”
implicava uma mudança curricular. O que se pretende fazer, embora de
forma encapotada, é reorganizar o currículo, isto é, mudar os conteúdos e
práticas lectivas.
Não é por acaso que a “aprendizagem” (13 vezes)
domina o “ensino” (5 vezes). E também não é por acaso que a “tecnologia”
(20 vezes) domina a “ciência” (11 vezes). O “Perfil” quer “organizar o
ensino prevendo a experimentação de técnicas, instrumentos e formas de
trabalho diversificados, promovendo intencionalmente, na sala de aula ou
fora dela, actividades de observação, questionamento da realidade e
integração de saberes” (p. 18). Eu tenho pena dos alunos que, se o
documento vinga, vão ter de experimentar “técnicas, instrumentos e
formas de trabalho”. E tenho também pena dos professores que, mesmo
estando seguros de técnicas que praticaram ao longo da vida e
comprovadamente funcionam, como o “ensino directo”, vão ter de
experimentar o que não funciona bem, pelo menos de forma generalizada,
como “projectos”.
Para concretizar o novo modelo educativo o Ministério criou um grupo
de trabalho multidisciplinar (do qual excluiu a Sociedade Portuguesa de
Matemática, que acaba de ganhar o Prémio Gulbenkian Conhecimento, pela
promoção do sucesso escolar), solicitando-lhe que reduzisse o currículo
ao essencial do essencial. Chama-se “emagrecimento curricular”. A ideia
não é “encolher os miúdos”, mas sim encolher o que os miúdos aprendem.
Qual é o ponto da situação? Temendo um alvoroço nas escolas por
altura das autárquicas, o primeiro-ministro mandou reduzir a
grandiloquente reforma a um ensaio controlado: a mudança deveria ser
experimentada num grupo de escolas que se voluntariariam para o efeito.
Esteve bem António Costa, ao limitar os danos. Mas o novo ano lectivo
está à porta e desconhece-se a lista das escolas-piloto, o que vão
ensinar e como vão ensinar. Sabe-se apenas que serão criadas duas novas
disciplinas (“Cidadania e Desenvolvimento” e “Tecnologias da Comunicação
e Informação”) e que as escolas poderão gerir até 25% da carga horária.
Não existe ainda o “Perfil” revisto de acordo com os pareceres
recebidos nem existem as conclusões do grupo do “emagrecimento
curricular”. O ministério da Educação queria alterar a educação a seu
bel-prazer, mas parece que o princípio da realidade se impôs ao
princípio do prazer.
*Professor de Física da Universidade de Coimbra e divulgador científico
IN "OBSERVADOR"
20/07/17
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